O isolamento social necessário para contar a pandemia do novo coronavírus está provocando impactos imediatos em esferas macro, como a economia, política e saúde público, e também no âmbito das relações interpessoais, impulsionando os indivíduos a rever hábitos, questionar os padrões sociais e afetivos previamente estabelecidos e buscar construir uma nova realidade. Essas tensões e incertezas têm impulsionado pesquisas em diferentes linguagens artísticas e gerado projetos instigantes, como Suportes Para Dois, trabalho de investigação física desenvolvido por Maia de Paiva e Danilo Arrabal.
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A artista do corpo pernambucana e o ator paulista conheceram-se em 2018, durante as gravações de um filme no centro de São Paulo. Ambos arte-educadores, estão juntos desde então, mas a partir do contexto atípico do isolamento social instituído desde março no Brasil, só agora elaboraram um projeto juntos, no qual também assumem todo o processo de criação e execução. O projeto foi selecionado pelo edital Poesias dos Escombros, iniciativa do projeto Transversalidades Poéticas, do Centro de Referência da Dança, mantido pela Prefeitura de São Paulo.
“Suportes Para Dois surge como um trabalho de investigação física mobilizado pelas inquietações que surgem a partir desse excesso de convivência que a quarentena nos impõe. Observamos que o distanciamento social imposto lá fora, no espaço público da cidade, repercute também numa hiper-proximidade aqui dentro, entre pessoas que compartilham um mesmo espaço doméstico de reclusão. A convivência 24 horas por dia em nosso quarto nos levou a refletir sobre os limites de suporte que uma pessoa pode oferecer à outra neste contexto”, explicaram os artistas em entrevista por e-mail.
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O trabalho de Maia e Danilo se ancora nas linguagens da performance e da dança para explorar possibilidades de pensar a cohabitação compulsória entre os indivíduos em um contexto de caos social e as tensões que ela provoca. Fugindo de uma elaboração dramático ou ficcional, a dupla tem treinado formas não convencionais de encaixe, sustentação, suspensão e movimentação de um corpo sobre o outro.
O processo é gravado em smartphones, editado e, então, publicado no Instagram, através dos perfis @maiadepaiva e @daniloarrabal. A dupla acredita que através do trabalho podem abrir um processo de troca com as pessoas, muitas das quais estão passando por processos similares na convivência doméstica.
“O trabalho é de tentativas, pois mais do que alcançar imagens belas e bem executadas, nos interessa o caráter de deslocamento que essa investigação física gera em nossos corpos e relação, suscitando tais provocações também em quem nos assiste. Desejamos deslocar essa tendência de um olhar psicológico sobre as relações pra um olhar para o corpo. Por isso o foco nas ações, ou seja, em uma pesquisa que nos engaje e provoque fisicamente, encarando as dificuldades geradas pelo peso, força, equilíbrio, incômodo e prazer desse encontro”, refletem. “Desconfigurar esse padrão de convivência é, justamente, reorganizar o encontro dos corpos a partir de outra perspectiva, e se deparar com as muitas leituras possibilitadas por isso.”
Sobre as mudanças que a rotina trancafiada no espaço doméstico provoca, os artistas identificam que a falta de atividades físicas, problemas de sono e sensações de ansiedade e estresse têm provocado efeitos diretos nos corpos. Como casal, também levam para o trabalho as nuances afetivas que há na vida a dois, o companheirismo, e a necessidade de autocuidado e individualidade.
Resistência poética
O casal pontua que o momento tem sido desafiador para os artistas, que se veem confrontados com o desejo de criar e pesquisar a partir do contexto histórico e, ao mesmo tempo, têm lidar com a reconfiguração dos modos de produzir no meio virtual diante da precarização das relações de trabalho.
“Longe de negar a potência que as novas tecnologias proporcionam, reconhecemos a necessidade de politizar esse processo. A isso se somam as preocupações diante da falta de perspectiva pós-pandemia para nosso setor, que agudiza o desmonte da cultura em curso há anos em todo o país. Não podemos ignorar também o impacto psicológico e social gerado pelo crescimento do ultra-conservadorismo, principalmente para as populações cuja vulnerabilidade atravessa suas vivências”, reforçam. “ Nesse contexto de múltiplas crises, o isolamento social se apresenta como um fator de agravamento que nos obriga a lidar com essas questões juntos, sendo muitas vezes um apoio fundamental para enfrentar tudo e outras uma convivência sufocantemente excessiva.”
Maia e Danilo reforçam que os trabalhadores da arte e da cultura necessitam com urgência de um plano do Estado para garantir sua sobrevivência a curto, médio e longo prazo. Para os arte-educadores, no entanto, o cenário não é otimista, uma vez que a área da cultura não é uma prioridade dentro do Governo Federal (recentemente, a Lei de Emergência Cultural, que visa destinar recursos para a área da cultura, foi aprovada na Câmara, mas ainda precisa passar pelo Senado e pela sanção do presidente).
“O que vislumbramos é um retrocesso inimaginável para a produção das artes performáticas, que além de enfrentar os desafios de readaptação ao mundo pós-pandemia enfrentará uma disputa desleal por recursos cada vez menores. Será necessária uma reinvenção dos meios de garantir renda por meio da arte, e será necessária uma reinvenção coletiva do próprio fazer artístico”, acreditam.
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