Racismo estrutural e maternidade em evidência na série Pequenos Incêndios Por Toda Parte

Produção original do serviço norte-americano Hulu, a série protagonizada por Kerry Washington e Reese Witherspoon chegou ao Brasil pela Amazon Prime. Confira a resenha da primeira temporada:
Valentine Herold
Publicado em 05/06/2020 às 15:35
Mia (Kerry Washington) e Elena Reese Witherspoon, as protagonistas da série Pequenos Incêndios Por Toda Parte Foto: Divulgação


Casos recentes de assassinatos de indivíduos negros por policiais brancos, como o do menino João Pedro no Rio de Janeiro ou de George Floyd nos Estados Unidos, escancararam o racismo institucional e estrutural que há muito tempo não cabia mais relativizar. Debater amplamente temas relacionados a questões raciais é indispensável e há anos produções audiovisuais vêm se pautando por essas temáticas, tecendo críticas contundentes a partir de narrativas ficcionais. Um dos casos mais recentes é a série Pequenos Incêndios Por Toda Parte que acaba de chegar ao Brasil através da plataforma de streaming Amazon Prime.

Ambientada em 1997 (com alguns flashbacks de anos anteriores), Pequenos Incêndios Por Toda Parte (Little Fires Everywhere) é estrelada por Kerry Washington (Scandal, Django Livre) e Reese ´ (Livre, Legalmente Loira, Big Little Lies) que interpretam, respectivamente, a artista plástica e fotógrafa Mia Warren e a jornalista e dona de casa Elena Richardson.

Dividida em oito capítulos - com cerca de uma hora cada -, esta primeira temporada é baseada no livro homônimo da escritora Celeste Ng, publicado no Brasil pela Intrínseca. Parece haver um consenso entre os leitores da obra que a adaptação para as telas se manteve fiel à essência das personagens e que as mudanças necessárias para que o enredo fosse apelativo no formato de série enriqueceram a narrativa. Uma delas foi a acertada decisão de escalar atrizes negras para os papéis de Mia e sua filha Pearl. Essa escolha resultou em camadas de tensões muito bem construídas, abordando subjetivamente - mas não superficialmente - racismo, classismo e privilégio branco.

O ponto de partida dos conflitos se dá com a chegada de Mia e Pearl na aparentemente idílica Shaker Heights, uma comunidade planejada localizada no estado de Ohio, cujos habitantes se orgulham de ter sido uma das primeiras a realizar a integração racial nos anos 60, mesmo a grande maioria da vizinha ainda sendo branca três décadas depois. Nômades, mãe e filha passaram os últimos 15 anos de cidade em cidade, supostamente devido aos projetos artísticos de Mia. Fica subentendido desde o início que ela carrega um grande segredo que até Pearl desconhece.

Muitos compararam a série a Big Little Lies, também protagonizada e produzida por Reese Witherspoon, mas as semelhanças são muito poucas e fazer uma análise de Pequenos Incêndios Por Toda Parte a partir deste paralelo seria muito raso. Porém, é compreensível que se estabeleça um elo entre as duas personagens encarnadas por Reese: ambas são mães perfeccionistas, que depositam grandes expectativas no futuro dos filhos de tal forma que não enxergam que as vontades dos mesmos podem ser completamente opostas aos seus desejos.

Subtramas instigantes

Casada com o advogado Bill, Elena tem quatro filhos adolescentes: Izzy, Lexie, Trip e Moody, que inicia rapidamente uma amizade com Pearl. Izzy é, à primeira vista, a mais diferente dos irmãos. Ela não se conforma com as regras da mãe e as duas vivem em conflito. Aí está outro trunfo da adaptação audiovisual, que foi a decisão de aprofundar os anseios desta personagem e o bullying que sofre tanto na escola quanto dentro de casa.

Para a infelicidade de Elena, sua caçula acaba se aproximando de Mia, a quem admira profundamente enquanto artista e compartilha dos mesmos ideias sociopolíticos. Ironicamente, a relação até então inabalável de Pearl com sua mãe também é estremecida quando a jovem projeta na família Richardson uma estabilidade de vida que nunca teve. A convivência com uma família "completa" (com todas as aspas possíveis) leva a adolescente a questionar Mia sobre seu pai, de quem não tem nenhuma informação nem fotografia.

O tema da imigração ilegal também é trazido à tona através da história da chinesa Bebe Chow, colega de trabalho de Mia. Cerca de um antes ela se viu tendo que tomar uma atitude drástica pela falta de dinheiro e comida, abandonando sua filha de apenas dois meses em frente ao prédio dos bombeiros. A bebê é adotada pela melhor amiga de Elena, que há anos tentava ser mãe. Ao descobrir o paradeiro da filha de Bebe, Mia não mede esforços para ajudar a amiga a ter a guarda de volta e este movimento vai alimentar ainda mais os problemas entre as protagonistas.

Ao longo dos episódios, são dadas pistas sempre muito misteriosas e vagas a respeito do passado de Mia. E aí está um dos melhores arcos narrativos da série. Toda essa tensão culmina no sexto episódio, intitulado O Inquietante, que se passa entre 1981 e 1983. Ao longo de esclarecedores e impecáveis 57 minutos, encontramos Mia aos 18 anos, recém-chegada em Nova York para fazer faculdade de Artes e uma jovem Elena, prestes a ter seu quarto filho.

Os sonhos, medos e principalmente os sacrifícios que essas duas mulheres tiveram que fazer em prol da maternidade são contados de forma tão emocionante quanto dura. Talvez tivesse sido mais benéfico para o ritmo da série que este episódio fosse o quarto ou quinto. Por ser o antepenúltimo, não resta muito tempo hábil para desenvolver as revelações.

Pequenos Incêndios Por Toda Parte termina da forma como começou, com o fogo tomando conta da mansão dos Richardson. Só que a dúvida sobre quem teria provocado esse incêndio, apenas um dos que fazem jus ao nome da série, do primeiro episódio é resolvida e surpreendente. Mas não há desfecho para todas as outras ótimas subtramas desenvolvidas ao longo da temporada, um indicativo que uma segunda parte deve ser anunciada em breve.

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