VIOLÊNCIA DE GÊNERO

De Nego do Borel a Marcos Harter: Por que 'A Fazenda' escala supostos agressores?

Especialistas em comunicação e sociologia analisam possíveis motivos por trás da decisão

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Nathália Pereira, Bruno Vinicius

Publicado em 08/10/2021 às 22:41
Análise
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Os desdobramentos da suspeita de violência sexual praticada pelo cantor Nego do Borel contra a modelo Dayane Mello em A Fazenda, da Record TV, mostra como o tratamento dado a casos de agressão às mulheres na televisão ainda é problemático. Especialistas e militantes de gênero apontam, inclusive, que a emissora de Edir Macedo corrobora com o abuso televisionado, pois há uma recorrente escalação de homens com histórico de violência contra mulher para o reality show.

O cantor foi anunciado pelo programa às vésperas de ser indiciado por "lesão corporal no âmbito da violência doméstica em razão da existência de indícios de lesão à saúde psíquica da vítima" — no caso, sua ex-namorada Duda Reis. As denúncias vêm desde janeiro, quando ela registrou um boletim de ocorrência na 1ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), em São Paulo, logo depois que acabaram uma relação de três anos.

Sobre Nego do Borel já pesava um indiciamento, na Delegacia de Atendimento à Mulher de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, por violência doméstica contra outra ex-namorada, Swellen Sauer.

Nego do Borel, o ator Dado Dolabella, campeão de A Fazenda 2009; MC Biel, finalista da edição do ano passado, e os ex-participantes do Big Brother Brasil Yuri Fernandes e Marcos Harter, vice-campeão em 2017, têm em comum o fato de que sobre eles pesavam denúncias ou processos - em investigação ou sentenciados — de violência de gênero quando foram convidados para o programa da Record. Agrava o fato de que todos os casos eram públicos: por exemplo, Yuri, que participou da edição de 2017, foi preso em flagrante e autuado na Lei Maria da Penha, em 2014, por agredir a então namorada, que era bailarina do Faustão.

A queixa contra Nego do Borel sobre o suposto estupro de vulnerável ocorrido em A Fazenda aconteceu no dia 25 de setembro. Após uma festa no reality show, o cantor deitou na cama com Dayane Mello, que estava embriagada. Quem acompanhava o programa pela madrugada, na transmissão ao vivo, ouviu quando a modelo disse: "Nego, eu tenho uma filha. Não posso. Entendeu? Não posso". O público pressionou a emissora e os patrocinadores — estes ouviram e, segundo o jornalista Leo Dias, colunista do portal Metrópole, influenciaram na expulsão do cantor.

A emissora só tomou posicionamento horas depois, na exibição do reality na TV, decisão considerada estratégica para gerar audiência ao programa. Um inquérito foi aberto pela polícia, em Itapecerica da Serra (SP), onde estão confinados os participantes de A Fazenda.

DEFESA

A forma como foi exibido o caso também reitera como a emissora tratou o assunto. A defesa da modelo Dayane Mello condenou a atitude da Record. "Segundo o programa exibido, o resumo da noite da vítima foi correr atrás do homem que a violentou, dando indícios e sinais afirmativos para que o mesmo se sentisse livre para praticar o ato. Mostrando uma narrativa distorcida dos fatos, na qual colocaram a vítima do abuso como alguém que buscou se colocar naquela situação, além de romantizarem todo o ocorrido", disse o comunicado nas redes sociais.

"Esconderam dos olhos do público as diversas vezes que Dayane disse para parar, que não podia e não queria. Não mostraram as falas repugnantes do participante falando que precisava de concentração para seu órgão íntimo ficar rígido o suficiente para praticar atos sexuais", continuou a nota.

BIG BROTHER BRASIL

As 21 edições do Big Brother Brasil, da TV Globo, também já registraram uma série de acontecimentos relacionados a abusos diversos contra mulheres praticados por participantes homens. Ocorridos dentro do programa ou fora, mas que vêm à tona durante a temporada. Em 2012, o BBB teve que lidar com o primeiro caso envolvendo a polícia dentro do programa, em uma situação semelhante à de Nego do Borel e Dayane Mello, mas tratada de outra forma.

O modelo Daniel Echaniz acabou expulso do programa da TV Globo após a suspeita de ter estuprado a estudante Monique Amin após uma festa no reality. Ela ficou desacordada, enquanto a audiência do pay-per-view, bem menor do que a de hoje, assistia a movimentos debaixo do lençol. Na época, as redes sociais ainda não tinham a força atual, porém as imagens foram divulgadas na internet na manhã seguinte.

A Globo decidiu expulsar o participante da casa um dia após o ato. Depois disso, Echaniz foi investigado pela Polícia Civil do Rio, que abriu uma inquérito para apurar se havia ocorrido ou não um estupro durante o programa. Ele acabou sendo absolvido.

Anos depois, o médico Marcos Harter foi expulso do BBB 17 por suspeita de agredir a estudante Emilly Araújo, com quem viveu um relacionamento durante a edição. Ela foi ouvida por um médico e uma advogada, de forma sigilosa, e mostrou marcas de agressões físicas, além de relatar o abuso psicológico. Apesar do relato, ela o perdoou depois que ele se desculpou chorando, demonstrando um outro tipo de violência, psicológica.

TV GLOBO/REPRODUÇÃO
ESCOLHA Harter foi expulso do BBB em 2017 e escalado para A Fazenda no mesmo ano - TV GLOBO/REPRODUÇÃO

Dois dias antes de ser ouvida pelos profissionais, Emilly foi encurralada por Marcos na casa, o que gerou revolta do público, que pediu sua expulsão. Ele foi chamado ao confessionário e, finalmente, deixou a temporada. Uma delegada chegou a intervir no programa, porém a participante não quis registrar queixa contra o ex-namorado.

Em 2020, o hipnólogo e youtuber Pyong Lee tentou beijar a ginecologista Marcela McGowan três vezes, além de abraçá-la pelas costas sem o seu consentimento em uma das festas. Em outro momento, apalpou as nádegas da cantora Flayslane. O participante foi chamado ao confessionário pela direção e foi apenas alertado pela produção sobre o comportamento na festa, sem nenhum tipo de punição.

A direção do BBB 20 ouviu, ainda, acusação de abuso que teria cometido o ginasta Petrix Barbosa, ao tocar nos seios da influenciadora digital Bianca Andrade, conhecida como Boca Rosa. Ele continuou no programa, mas foi eliminado em seguida. As decisões da Globo sobre os comportamentos dele e de Pyong foram criticadas pelo público. Fora do reality, ambos prestaram depoimento à Polícia Civil.

Por que escalar possíveis agressores?

Os casos de supostos abusos em programas de grande audiência na televisão aberta podem suscitar análises e reflexões sob diversos aspectos. Isso porque, no mínimo, aliam o poder de mobilização social cada vez maior do formato reality show ao fato de que o Brasil é um país com números alarmantes quando o assunto é violência contra mulheres. Somente em 2020, foram registradas 105.821 denúncias de ocorrências do tipo, de acordo com dados divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no último mês de março. Por que, então, emissoras insistem em escalar supostos agressores para o elenco de suas atrações, em um momento no qual o debate sobre direitos femininos estão tão em voga?

"A controvérsia é mobilizadora do que chamamos de economia da atenção", observa Thiago Soares, pesquisador e professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. "Nossas vivências, cliques, curtidas, estão sendo disputados, em um processo de intensa 'datificação' da vida. Desse modo, um participante que causa grande controvérsia e impulsiona grupos de fãs é muito desejado, está na pauta dessas empresas."

Junto a isso, destaca o pesquisador, aparece em xeque as questões relacionadas à ética das emissoras, sob a qual são avaliados os critérios que decidem o que irá ou não ao ar. "O que me parece em jogo na Record é a possível contradição de estar em um ambiente construído sobre as bases do cristianismo e do conservadorismo ao mesmo tempo que reitera personagens agressivos", acrescenta Thiago. "Por outro lado, também não acho tão estranho tal comportamento, dada a aproximação de alguns grupos evangélicos com as atuais bancadas políticas que vão na contramão, por exemplo, dos direitos da mulheres. Precisamos fazer uma reflexão sobre quais são as posições éticas que essas emissoras estão assumindo."

Quando avaliado por uma perspectiva feminista, o tema poder levar a uma retrospectiva sobre a forma como os corpos femininos têm sido historicamente tratados. A mestre em sociologia política Jéssica Miranda pontua que esses corpos são continuamente colocados em posição de objetificação, em que o controle da sexualidade e do potencial reprodutivo das mulheres é posto nas mãos dos homens.

"Nós, como a Simone de Beauvoir bem falou [no livro publicado pela filósofa francesa em 1949], somos 'O Segundo Sexo'; e esse 'segundo sexo' acaba sendo visto como de serventia ao 'primeiro', que é o masculino", afirma. De acordo com Jéssica, para se entender o consentimento feminino é preciso que antes enxerguemos a mulher como um sujeito de direito. "O próprio debate público acerca do corpo da mulher reproduz uma violência simbólica. Por que é que cabe à esfera pública, sempre associada aos homens, decidir se a mulher é sujeita ou não de direitos e de seu próprio consentimento?", questiona.

Um caminho possível? 

A jornalista feminista, pesquisadora e integrante do coletivo de comunicação social Intervozes Mabel Dias afirma que a postura da TV Record incita a violência de gênero na televisão. "Isso expõe e descredibiliza a denúncia de mulheres que são vítimas dessas violências. Atrapalha um grande trabalho de movimentos feministas e sociais, estados e municípios que fazem ações para que as mulheres saiam desse ciclo de violência", afirma ela, que também é mestranda em comunicação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Mabel Dias reitera, ainda, que a conduta tomada pela emissora é seguida por outros grupos de comunicação. Como proposta de possível caminho de mudança, a pesquisadora defende que as empresas do área usem seus espaços nas grades de programação para educar sobre como poderíamos, como sociedade, sair dos ciclos de violência que abatem as mulheres.

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