No Dia da Consciência Negra, o que as editoras estão fazendo para incluir escritores negros?
As irmãs Bibiana e Belonísia encontram uma faca misteriosa guardada sob a cama da avó. E a partir disso ocorre um acidente que muda as vidas delas. Mais de 100 mil pessoas leram a premissa presente na narrativa do livro "Torto Arado", um das produções de ficção mais vendidas no Brasil nos últimos anos, sob a escrita de Itamar Vieira Júnior. A obra antirracista, lançada em 2019, se tornou um clássico da literatura contemporânea. Prova que há público-leitor para obras escritas por autores e autoras negras brasileiras. Mas, o que de fato tem sido feito pelas grandes editoras para mudar o cenário da literatura nacional?
Os livros que chegavam às prateleiras das livrarias eram escritos basicamente por homens brancos. É o que revela uma pesquisa do grupo de estudos de literatura contemporânea da Universidade de Brasília (UNB). 258 romances, de três editoras, foram analisados entre 1990 e 2004, mostrando que 93% eram feitos por brancos. Apesar da análise ainda ser distante, em que quase duas décadas foram transformadoras para a inclusão na educação e na leitura, ela serve de base para entender como o mercado funcionava até pouco tempo.
Na contramão do que acontecia há pelo menos 20 anos, os grupos editoriais têm medido esforços para mudar os cenários, criando núcleos de diversidades, ampliando a cartela de livros antirracistas e reforçando a chegada de novos autores negros. "Durante muito tempo o mercado editorial cochilou feio em relação à difusão dos autores negros. Diversos motivos para isso. Desde o puro desconhecimento à preguiça pra descobrir novas vozes, também indiferença, pouca sensibilidade, talvez. Os autores e autoras negros sempre estiveram entre nós, sempre produziram. Não se trata de algo "novo": a novidade é o establishment começar a ouvi-los", conta Leandro Sarmatz, editor da Todavia.
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O grupo editorial foi o responsável pela distribuição de "Torto Arado", um grande exemplo prático de como os negros sempre produziram em nível de igualdade narrativa. "'Torto arado' representa, não só para editora e não apenas para a literatura brasileira, um sopro novo de vida na literatura de alta qualidade que alia a reflexão antirracista. A força do livro de Itamar reside no que ele representa pro romance brasileiro contemporâneo e para nossa visão do Brasil, de ontem e de hoje. Torto arado, como pouquíssimas obras, projeta, reprojeta e dá uma nova luz para a leitura da nossa literatura, antes e depois dele", explica o editor.
A editora é relativamente nova, nasceu em 2017. E por ser jovem, já chegou atenta a uma demanda que o mercado já existia. "No caso da Todavia, editora que surgiu em 2017, desde o início já não era possível conceber uma casa de qualidade e contemporânea sem atentar para todas as vozes -- riquíssimas -- que formam a cena contemporânea. Tanto que nosso primeiro grande romance estrangeiro, a ter saído na primeira leva de lançamentos em julho de 2017, era 'O vendido', uma sátira racial inteligente e desabusada de um autor afro-americano, Paul Betty", afirma o editor.
Companhia das Letras
O cenário da Companhia das Letras é diferente. Atuando no mercado há 35 anos, há apenas 1 decidiu dedicar, exclusivamente, um setor para a diversidade. Quem está à frente desse processo é o historiador Fernando Baldraia, doutor em História pela Universidade Livre de Berlim, assumindo o cargo de editor de diversidade. Deste tempo para cá, houve algumas mudanças e direcionamentos dentro do maior grupo editorial do País, mas ele considera que é um tempo muito incipiente para provocar alterações estruturais.
"Melhorou um pouco, mas um ano é um período muito curto. Para ser sincero não dá para mudar nada. É um tempo até para fazer um balanço é curto demais. A editora fez 35 anos este ano, e você tem um ano em que há uma preocupação, nomeada, para a diversidade. Sobretudo sobre o antirracismo. Você tem 34 anos, de maneira inconsciente, mecanismos operando em uma estrutura excludente dentro do mercado editorial. Em um ano, esse avanço que você vai conseguir é muito pequeno, porque são muitos processos que têm que mudar", enfatiza Baldraia.
Para o editor de diversidade, o livro nas prateleiras é apenas a ponta do iceberg. Há toda uma estrutura que precisa ser repensada. "Quando a gente fala de distribuição em país extremamente desigual como o Brasil, em que os fretes e a logística vão permitir os livros em determinados lugares ou não, já temos um problema aí. Agora dentro de um ano você coloca mais gente para dentro, houve contratação de pessoas negras, mas quando a gente fala em estrutura uma ideia e um mundo de diversidade na cabeça das pessoas dentro de uma corporação grande um ano é pouca coisa", pontua Fernando.
Durante esse período, o livro "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, também se tornou um clássico contemporâneo. A narrativa antirracista - mas não se resume a isso - é finalista dos prêmios Jabuti, Oceanos e São Paulo. Os três fazem parte de um circuito importante na literatura. Neste ano, a editora também lançou o "Enciclopédia Negra: Biografias afro-brasileiras", de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz, é um das maiores reuniões de biografias de personalidades negras brasileiras nas prateleiras.
O desafio de ser uma mulher preta independente
Se para estruturar uma grande empresa com diversidade é um desafio, para escritores e escritoras fora do grande circuito o problema é ainda maior. Uma das escritoras em evidência em Pernambuco, Odailta Alves, hoje com 41 anos, só teve seus escritos publicados após muitas tentativas. "A principal dificuldade para uma mulher negra ser publicada é o alto preço das grandes. Muitas vezes a editora não quer comprar um projeto da mulher preta que não tem visibilidade. Djamilla Ribeiro e Conceição Evaristo, ok serem publicadas. Mas uma Odailta Alves e tantas escritoras fora do eixo Sul-Sudeste aí que a coisa dificuldade mesmo", conta a escritora.
Escritora, educadora e atriz, Odailta explora, hoje, múltiplas possibilidades com a escrita por causa de publicações independentes. Publicou os livros "Clamor Negro", "Escrevivências" e "Letras Pretas" dessa forma. O primeiro já vendeu mais de 2,5 mil exemplares. Ela acredita que o público está mais aberto para essas leituras. "Os leitores estão mais receptivos, sim, para essa questão da leitura. Como eu trabalho com educação e trabalho com educação do estado de Pernambuco todo, então eu acabo educando a partir da poesia e isso acaba também tendo uma certa inserção", reitera Odailta, que publicou também os livros "Pretos Prazeres" e "Nenhuma Palavra de Amor".
"Esse processo de melhores caminhos (para a igualdade), eu acredito que estamos construindo. De maneira alternativa, também estamos usando as mídias para divulgar nossos trabalhos estamos, fazendo os slams das minas os slams pretos trazendo a poesia preta da favela. Mas eu acredito que enquanto política pública é fazer um trabalho mesmo para o fortalecimento dessa literatura negra. Que as editoras se predisponham, dentre as suas publicações anuais, ter um percentual garantido de escritoras e escritores pretos e pretas", indica Odailta como um dos caminhos possíveis.