Por Norimitsu Onishi, c. 2022 The New York Times Company
Paris — Segundo um personagem do romance de Mohamed Mbougar Sarr, La Plus Secrète Mémoire des Hommes (A mais secreta memória dos homens, em tradução livre), os escritores africanos que moram na França sonham com algo que jamais admitirão publicamente. Esse sonho — "nossa vergonha, mas também a glória que fantasiamos" — é ser reconhecido pelo país e por seu meio literário.
A relação entre a França e suas antigas colônias africanas é extremamente tensa. Mesmo depois de seis décadas de independência, os gauleses continuam presentes ali, não só na política e na economia, como também no imaginário coletivo. "É um elo muito forte, porque, no fim das contas, só existe Paris. Quando você conhece escritores africanos anglófonos é que percebe como se surpreendem com a força que essa relação com a França ainda tem", disse Sarr.
Esta se mantém onipresente para muitos autores africanos francófonos como ele, que foi criado no Senegal e se mudou para a nação europeia há 12 anos. "Nossos leitores estão na França, que continua sendo o lugar de julgamento, validação e reconhecimento literários", reconheceu.
No fim do ano passado, Sarr, de 32 anos, tornou-se o primeiro escritor da África subsaariana a ganhar o principal prêmio literário francês — o Goncourt, criado em 1903. Mas o destaque não vai só para suas origens; vai também para o tema do livro: o próprio cenário da literatura francesa, que ele descreve com uma mistura de crueldade, desprezo e carinho.
Mas, então, por que foi reconhecido com a maior honraria justamente por esse meio literário? "Não sei bem como interpretar o fato. Será que eles têm mais senso de humor, ou autodepreciação, do que se acredita? É uma maneira de tentar me calar? De me corroborar com o prêmio? Realmente, espero que tenha sido, acima de tudo, porque o livro é bom", afirmou Sarr na entrevista concedida no escritório de sua editora em Paris, a Philippe Rey.
O romance foi elogiado quase universalmente, com o Le Monde se referindo a ele como "ótimo". Narra a jornada em busca de um escritor senegalês (fictício) há muito esquecido, T.C. Elimane, aclamado durante um breve período por um livro publicado na França em 1938, no auge da era colonial. A princípio reconhecido pelo cenário literário francês, que o descreve como o "Rimbaud negro", o personagem é acusado de plágio, sua obra é retirada de circulação e ele é reduzido ao silêncio.
A obra, cujo principal narrador é um jovem romancista que dá a impressão de ser o alter ego do próprio Sarr, é desenvolvida em vários estilos, com influências francesas, africanas e latino-americanas; a história viaja no tempo e no espaço, da Paris contemporânea à Argentina do pós-guerra, passando por um vilarejo senegalês. Além da voz principal há diversas outras, que se complementam para formar uma história ampla. "Um dos meus objetivos principais era colocar realidades e tradições diferentes no mesmo nível", explicou o autor.
De fato, Sarr se inspirou na história real de Yambo Ouologuem, cujo romance, Bound to Violence, ganhou o segundo prêmio mais prestigiado da França, o Renaudot, em 1968. Acusado de plágio, o malinês parou de escrever e voltou para a terra natal. "As acusações contra autores fictícios ou reais — que incorporam a literatura ocidental no próprio trabalho de acordo com seus objetivos — abordam a questão central do colonialismo e o lugar da África no mundo de hoje. Os escritores ocidentais — todos, de Jean de La Fontaine a James Joyce — podem se beneficiar do passado sem medo desse risco, porque isso é considerado parte de sua herança. No geral, as pessoas ficam muito satisfeitas quando um africano escreve em um idioma europeu, ou na língua colonizadora, mas tenho a impressão de que há limites. Não deve ir muito longe; quero dizer, não deve haver insolência ou irreverência. Ora, quando se é fonte de uma herança, é preciso ter a capacidade de aceitar que seus herdeiros podem se apropriar dela, renunciar a ela ou brincar com ela."
Foi exatamente isso que ele fez no livro. O Goncourt tem o poder de erguer uma carreira da noite para o dia, e Sarr continua bastante ocupado mais de seis meses depois do triunfo. Sua obra está sendo traduzida em quase 40 idiomas, com a versão em inglês programada para lançamento em 2023. É o quarto livro desde que começou a escrever, há dez anos, depois de ter trocado o Senegal pela França. "Comecei por causa da solidão. Teve também a experiência da imigração e todos os probleminhas que a mudança de país expõe."
Mais velho de sete irmãos, Sarr cresceu em Diourbel, cidadezinha poeirenta na porção central do Senegal, perto de Touba, centro da irmandade muçulmana sufi dominante chamada Mouride. Sua vida familiar foi baseada na tradição da ordem e na cultura do grupo étnico a que pertence, o sererê. Aprendeu a falar o dialeto com a família, e mais tarde o uolofe, principal idioma senegalês. Em casa, segundo a tradição matriarcal da etnia, sua mãe e sua avó lhe contavam histórias sobre a família e o mundo, quase sempre no quintal, onde dispunham um tapete à noite. Essa tradição oral permeia seu livro, no qual verdades essenciais são reveladas na narração de uma mulher chamada Aranha Mãe.
Ele aprendeu o francês no colégio particular católico em que estudou em Diourbel, embora estivesse familiarizado com o idioma, falado em casa pelo pai, médico, que viva mandando o filho para as livrarias. "Ele assinava diversos jornais, e volta e meia me mandava escrever resumos das notícias, eventos aleatórios ou as atividades do presidente naquele dia. Nasci em um ambiente que desde cedo me estimulou a buscar palavras e livros", recordou Sarr.
Depois de ter concluído ensino médio em Saint-Louis — antiga capital colonial da África Ocidental Francesa, na costa atlântica do Senegal —, Sarr, como muitos alunos brilhantes de seu país, foi para a França a fim de continuar os estudos. Seus primeiros três livros abordam temas contemporâneos: o extremismo islâmico, a imigração e a homossexualidade no Senegal. Mas os temas mais atemporais de La Plus Secrète Mémoire des Hommes começaram a germinar nele assim que começou a escrever.
Morando em Beauvais, cidade cerca de 80 quilômetros ao norte de Paris, Sarr passou a se dedicar à escrita em tempo integral depois de formado, mesma época em que também começou a analisar o cenário literário local, que ocupa um espaço crucial em sua história: "Passei anos na periferia desse universo — observando, lendo seus livros e me familiarizando com seus personagens antes de adentrá-lo, de forma meio violenta, quase como se fosse uma invasão." Essa entrada se deu em setembro passado, quando seu livro foi incluído na longa lista de concorrentes ao Goncourt.
As premiações literárias francesas são gerenciadas por um universo fechado e exclusivo que tende a reconhecer os membros já estabelecidos dessa panelinha, bloqueando os recém-chegados. O júri — normalmente dominado por homens brancos idosos com cargo vitalício, alguns inclusive editores de grandes empresas que chegam ao cúmulo de defender e anunciar os livros em que eles próprios trabalharam — simboliza a França que resiste às mudanças. "Não sei se as instituições literárias francesas vão conseguir funcionar nesse esquema por muito mais tempo", afirmou Sarr.
Os pais e irmãos do autor começaram a acompanhar a evolução das listas, cada vez mais curtas. Um deles lhe enviou o alerta antes mesmo que ele soubesse que tinha sido selecionado. Em novembro, no dia em que o Goncourt deveria anunciar o novo vencedor, Sarr preferiu esperar no escritório minúsculo de sua editora em Paris. Ficou sabendo do triunfo minutos antes do anúncio oficial — e da enxurrada de artigos anunciando que o prêmio literário mais prestigiado do país fora conquistado por um escritor da África subsaariana pela primeira vez.
Sarr ligou para os pais no Senegal. Depois dos cumprimentos de sempre, o filho deu a notícia ao pai. "Conseguimos", disse apenas, fazendo questão de usar a primeira pessoa do plural.
Eles tinham invadido a casa.