O espaço perdido pelo forró tradicional nas grandes programações do São João, alvo de uma discussão que já se arrasta nos últimos anos, ganhou um novo episódio com a chegada de junho de 2023.
Desta vez, quem chamou atenção para o fato foi Flávio José durante show no São João de Campina Grande (PB) na última sexta-feira. O artista deu a entender que o tempo da sua apresentação foi reduzido para estender a atração seguinte: Gusttavo Lima, do sertanejo.
"Se ficar alguma música do repertório, que vocês tão pensando em ouvir, e não vão ouvir, a culpa não é minha. Eu não tenho nenhum show para sair daqui correndo pra fazer. Não foi ideia minha", lamentou o músico. "Infelizmente, são essas coisas que os artistas da música nordestina sofrem. 'Precisa cantar 1h30 não, uma hora tá bom'. Vamos nos virar nos 30 para ver se a gente atende vocês."
A fala logo gerou uma grande repercussão nas redes sociais. Em nota, a Prefeitura de Campina Grande pediu desculpas e prestou solidariedade. "Infelizmente, não conseguimos controlar a ordem dos shows, responsabilidade da empresa que venceu a licitação e realiza a festa. Mas estamos atentos e cobrando para que nossos artistas sejam respeitados".
Em nota enviada à imprensa, a empresa Arte Produções se desculpou com o músico e apontou. "Devido um erro em nosso cronograma técnico, o show que deveria ter sido antecipado, a fim de cumprir com pontualidade o horário de encerramento geral do evento, acabou sendo suprimido em alguns minutos, não tendo relação nenhuma com a apresentação do artista Gusttavo Lima", justificou.
No domingo (4), quem colocou mais fogo na discussão foi Dorgival Dantas, durante show em Caruaru: "Você que é nordestino: faça pelo forró, faça pelo sanfoneiro, pelo zabumbeiro e pelo triangulista. Faça pelos grandes que estão entre nós e que muitas vezes estão tendo que arranjar até uma discussão, de vez em quando, para defender o forró".
Discussão
Não é nova a controvérsia entre forrozeiros e sertanejos. Em 2017, Elba Ramalho questionou a legitimidade da contratação de artistas sertanejos para apresentações no principal palco de Campina Grande (PB). Ela argumentou que artistas ligados ao forró nunca se apresentaram na Festa do Peão de Barretos, evento que é reduto dos sertanejos.
Em 2021, foi a vez de Jorge de Altinho, através de uma empresária e esposa, questionar a falta de convite para o São João de Caruaru - o músico é autor de "Capital do Forró", ajudando a difundir o título da cidade. Em ano de eleição, a questão virou uma pauta política, já que a programação foi montada quando Raquel Lyra (PSDB) ainda era prefeita do município. Neste ano, inclusive, Altinho é homenageado do São João do Recife, capitaneado pelo PSB.
Em 2023, o São João de Caruaru conta com dois nomes "tradicionais" do forró no Pátio de Eventos Luiz Gonzaga, principal palco da festa. São eles: Santanna, o Cantador e Israel Filho - além de Elba, na abertura do sábado. Nos últimos anos, artistas ligados a um forró mais "raiz" ficam espalhados em outros palcos, como Alto do Moura.
Perguntado sobre o tema ao JC, o cantor Rogério Rangel ressaltou que a "descontrução do forró e da música nordestina não vem de hoje". "Acredito que seja um conjunto de coisas, como a própria mídia que valoriza exageradamente os sertaneos e mais ou menos os valores locais. A nossa música se tornou muito vulnerável. Qualquer grande movimento é capaz de nos apagar", diz o músico.
O artista sugere que é necessária uma união entre artistas, poder público e mídia para que essa "manutenção" do forró tradicional exista. "Os secretários de cultura precisam ser qualificados. Hoje, esses cargos muitas vezes são ocupados por pessoas que ajudaram na campanha do perfeito e que não possuem conhecimento."
"Os próprios artistas também precisam ter atitude. Temos de nos preparar para esses shows avassaladores, dialogando com os jovens, dentro das nossas raízes. Precisamos falar grego aos gregos", diz. "Muita gente não vai gostar do que vou dizer, mas, não podemos ficar para sempre elogiando Gonzaga, que é um grande gênio e nos deixou um legado grandioso. Devemos, a partir dele, continuar a história. Mas, eu, Rogério Rangel, não posso contar a mesma piada que Gonzaga contou".