"Em cada rua destas, em cada telhado daqueles, numa ponte, numa calçada, numa nave, num cais, num jardim, viveu também alguém que nos precedeu no mundo e que nos foi querido. Nossos avós, nossos pais, irmãos de nosso sangue, uma madrinha, uma ama-sêca, um amigo, já longe de nós, dormindo no cemitério, por ali andaram, por ali sorriram, por ali sofreram, por ali pensaram em nós…".
O trecho é do escritor Mário Sette, um dos mais reconhecidos cronistas do Recife no século passado, em seu livro "Arruar - História Pitoresca do Recife Antigo" (1948). Na obra, o autor propõe um passeio pela cidade. Em contraponto à rapidez dos bondes elétricos, ele sugere um passeio mais lento, em que possamos ver os detalhes das ruas, suas histórias desconhecidas e já quase esquecidas.
"Retratos Fantasmas", novo longa-metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho (que estreia no dia 24 de agosto), propõe um passeio similar e com um enfoque especial nos antigos cinemas de rua do Centro, localizados entre Santo Antônio e Boa Vista. Sette sequer separou um trecho para os cinemas em seu livro. Na sua época, eram novos e modernos demais para uma obra que lembrava os "tempos de seus avós e bisavós". (continua após o vídeo)
Contudo, o tempo é efêmero e tudo passa. Símbolos da modernidade e centros irradiadores da cultura internacional, os cinemas de rua fecharam, seus prédios passaram por processos de degradação, viraram farmácias, lojas de eletrodomésticos ou igrejas evangélicas. Tudo isso ainda está lá, e é sobre isso tudo que "Retratos Fantasmas" quer falar.
Embora tenha sido "vendido" como um documentário sobre os antigos cinemas do Recife e o hábito de ir ao cinema (talvez para um entendimento mais rápido do espectador que lê a sinopse), o longa vai além disso. Quem o assistir descobrirá um filme mais amplo sobre a cidade, suas mudanças e riquíssimas memórias. Em cada rua, prédio ou esquina mora uma curiosidade.
A cidade
Essa visão mais "ampla" da capital já é exposta no começo do filme, que é narrado pelo diretor e dividido em três partes. A primeira delas se chama "O apartamento de Setúbal", tendo ponto de partida a Zona Sul - que só veio a ter um cinema nos anos 1980 e inaugurou o modelo do "multiplex" na cidade.
Kleber Mendonça escolheu começar a sua narrativa pelo apartamento em que viveu por cerca de 40 anos e gravou diversos filmes, inclusive "O Som Ao Redor" (2013), que o projetou para festivais internacionais. Ele comenta sobre sua infância, juventude e mãe, que foi pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco.
Logo compreende-se que estamos, de fato, diante de um filme de Kleber, um diretor que conseguiu construir uma interessante identidade para os seus filmes, que desvelam hábitos sociais e culturais quase flertando com um conceito de "história íntima" - que diz respeito à busca das camadas mais ocultas da história, inclusive as mais particulares, indiscretas ou aparentemente desimportantes.
A reflexão sobre a cidade compõe essa identidade do cineasta. O curta "Recife Frio" (2009) imagina as consequências sociais da mudança do clima na cidade; o "Som ao Redor" expõe as dinâmicas da convivência entre vizinhos cercados entre prédios; "Aquarius" (2016) reflete sobre a especulação imobiliária, memória e resistência. Até mesmo "Bacurau" (2019), embora ambientado no Sertão, traz um senso de comunidade próprio de pequenas cidades.
"Retratos Fantasmas" consegue dialogar com todas essas citadas obras de alguma forma: o impacto da arquitetura no cotidiano de "Recife frio"; a questão da segurança de "O Som ao Redor"; ou os cupins que invadem o apartamento de Clara (Sônia Braga) em "Aquarius". É possível entender diversas referências de todos esses filmes, compreendendo melhor a visão do diretor.
Documentário sentimental
Na discussão sobre a cidade ainda está o Centro, que assume o protagonismo a partir da Parte 2: "Os cinemas do Centro do Recife", introduzida com um enfoque na Avenida Guararapes, um símbolo do passado moderno e da presente decadência da região. Kleber explica como ocorreu a "fuga do dinheiro" da área, com o comércio alocando-se na dinâmica dos shoppings na Zona Sul.
Apesar disso, o filme não vai apenas "denunciar" um abandono. Ele busca a beleza do Centro em suas paredes pichadas, seus edifícios abandonados e cheiro de urina. Em determinada trecho, o diretor versa: "o Centro tem um clima de: 'não gosta de mim? Foda-se'."
É ao adentrar nas histórias do cinemas que "Retratos Fantasmas" mostra o seu esplendor. Não trata-se de um documentário convencional, entrecortado por imagens de arquivo e entrevistas por personagens e especialistas.
O material de arquivo (pesquisa de Karina Nobre e Cleodon Coelho) e as filmagens produzidas especialmente para o longa são entrecortadas de forma bastante envolvente e criativa, com montagem de Matheus Farias.
O auxílio da trilha-sonora também vale atenção. Em determinados momentos, a música eleva a tensão, dando um tom de "thriller" já conhecido do cineasta - o design de som é do próprio Kleber, com mixagem de Ricardo Cutz.
Entre as informações típicas de documentário, está a própria experiência que o diretor teve com os espaços na juventude e o que descobriu ao longo de sua vida. Nesse sentido, "Retratos Fantasmas" pode ser descrito como um "documentário sentimental" da cidade. O próprio Kleber mostra um mapa desenhado à mão, apelidado de "mapa sentimental do Recife".
Ambas as expressões lembram o "guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife" de Gilberto Freyre, de 1939, que inaugura um tipo de guia em que o autor se insere para colocar suas afetividades.
O longa nos apresenta Seu Alexandre, que cuidou da projeção do Art Palácio, ou Paulo, um ambulante que vendia cartazes jogados no lixo do prédio que comportava as distribuidoras internacionais de cinema. Nas sessões do São Luiz vemos Joel Datz (o "Irmão Evento"), Ariano Suassuna e Fernando Spencer.
Através das salas do Art Palácio, Veneza, Moderno e São Luiz, podemos conhecer diversas peripécias históricas da cidade, sendo até um serviço para os seus habitantes. Quem poderia imaginar que um desses cinemas citados surgiu através de interesses da campanha nazista no Brasil, antes da 2ª Guerra? Esse é um exemplo de como o filme acaba indo fundo em determinados períodos, trazendo à tona a carga cultural e econômica da cidade.
Mas é interessante pensar também como esse filme será recebido pelo público do exterior. Outros centros urbanos estão se degradando no mundo, assim como tantos outros cinemas já sumiram. É urgente pensar nessas questões, e é incrível que o Recife possa ser um caminho ou vitrine para isso.
Mais uma vez, Kleber Mendonça Filho sabe mostrar como algo aparentemente local pode ganhar uma dimensão universal. Em cinemas de todo o mundo, as pessoas andaram, sorriram e sofreram.