Uma nota técnica com levantamento e análise de dados sobre os pagamentos de cachês de atrações do Carnaval do Recife de 2023 não conseguiu detectar como se deu o uso de R$ 16.337.612 do orçamento destinado pela Prefeitura do Recife. A verba total usada pela gestão municipal foi de R$ 36.269.736,10 - assim, faltaria transparência sobre o uso de 45,04% do orçamento para cachês da festa.
A Nota Técnica 05/2023 foi encomendada pelo mandato do vereador do Recife Ivan Moraes (PSOL) e usou dados do Diário Oficial do Recife, Dados Abertos Recife, Portal da Transparência do Recife e Portal Tome Conta do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE/PE), além de dados via Lei de Acesso à Informação.
De acordo com o documento, foram feitos 12 Pedidos de Acesso à Informação à Prefeitura, "mas nem todos foram satisfatoriamente respondidos".
'Dois Carnavais'
Com a análise desses materiais, a equipe do projeto chegou a diversas conclusões, sendo a mais fundamental delas a "existência de dois carnavais": "Um oficial, que corresponde aos sete dias da programação divulgada pela prefeitura e um outro que diz respeito a um período mais ampliado de 60 dias, que compreendemos como o Ciclo Carnavalesco", diz o documento da nota técnica.
"O primeiro sabemos quanto custou, como aconteceu e quando aconteceu; o segundo sabemos que existiu, através da identificação de pagamentos, mas não há transparência para que tenhamos propriedade para chamá-lo de democrático", continua. O documento sugere que os R$ 16 milhões citados estejam justamente nesse "carnaval estendido".
Outra informação apontada no relatório diz respeito à função da Comissão de Avaliação Artística, que tem dado nota máxima (20 pontos) para todos os grupos que cumpriram as exigências documentais mínimas nos últimos dois ciclos carnavalescos. A Comissão deveria, na verdade, avaliar as propostas e dar notas para os diferentes selecionados.
Procurada pela gestão, a Prefeitura do Recife informou que os questionamentos feitos via Lei de Acesso à Informação (LAI) "dizem respeito apenas a um recorte do ciclo carnavalesco, no caso os polos centralizados e descentralizados, desconsiderando todo o período de prévias, apoio a blocos e agremiações, bem como Baile Municipal, corredores da folia e até mesmo polos infantis".
"Sendo assim, a suposta ‘diferença’ entre valores inexiste caso os cálculos sejam executados sobre o ciclo carnavalesco como um todo e não apenas sobre o recorte feito via LAI", diz a nota (confira na íntegra no final da matéria).
A nota técnica foi produzida por uma equipe composta por Carol Vergolino (coordenação e texto), Guilherme Moura (texto, análise e levantamento de dados), Aluízio Câmara (texto), Rafaela Clericuzi (texto), com revisão de André Araripe e Ivan Moraes.
Palco x Chão
Os dados ainda demonstram que a maior disparidade ocorre quando existe uma divisão da programação entre apresentações de palco e chão (esse segundo termo é usado para apresentações da cultura popular e das orquestras).
Apesar das apresentações de chão serem 52,50% (R$ 3.560.568,50) da grade, o valor somado dos cachês só representa 17,90% (R$ 16.371.55) do total.O valor médio do cachê de uma atração de chão é cerca de cinco vezes menor que o de palco.
Origem
O relatório ainda informa que, fazendo um recorte apenas das atrações de palco, as atrações de Pernambuco correspondem a 92,43% da programação (342 atrações). Porém, apenas 28 atrações de outros estados recebem 36,38% do valor total.
"A diferença fica nítida quando comparamos os cachês médios, enquanto os artistas de Pernambuco recebem um cachê médio de R$ 30.454,93, os artistas de outros estados recebem um cachê médio de R$ 212.714,28", diz o texto. Assim, o valor médio do cachê de uma atração do estado é quase sete vezes menos que as atrações de fora.
Transparência
"O Carnaval do Recife é uma das maiores festas populares do Brasil e onde se investem recursos volumosos. Por meses, estudamos todo o processo que vai da escolha das atrações até a publicidade dada aos contratos e percebemos que há falhas e lacunas importantes, especialmente no que diz respeito à transparência no uso de recursos públicos”, afirma o vereador Ivan Moraes.
"Sabemos que o Carnaval é um evento importantíssimo para a cidade e também bastante complexo de se fazer. A gente pede que o processo seja feito de forma mais democrática e transparente, da mesma forma como a Prefeitura exige dos produtores culturais. Todos os produtores precisam prestar contas do que gastou, como gastou. A Prefeitura também precisa fazer isso", diz Carol Vergolino, coordenadora do relatório.
Sobre as informações do uso dos R$ 19.932.123,50 identificados, ela ressalta a existência de desigualdades na distribuição. "Nós temos a cultura popular ocupando 55% da programação, mas recebendo apenas 17,9% dos cachês. E mais uma vez, não sabemos exatamente como essas pessoas são escolhidas. Acreditamos que é preciso ter parecerista, ranqueamento e um acesso democrático."
O que diz a Prefeitura
Procurada pela reportagem, a Prefeitura do Recife esclareceu que os "investimentos realizados por conta do ciclo Carnavalesco 2023 seguiram todos os ritos que regem a contratação de serviços públicos e que se referem a todo o período, que se estendeu dos dias 4 a 28 de fevereiro e que não há diferenças entre valores executados e divulgados".
"Os questionamentos feitos via Lei de Acesso à Informação (LAI) por sua vez, dizem respeito apenas a um recorte do ciclo carnavalesco, no caso os polos centralizados e descentralizados, desconsiderando todo o período de prévias, apoio a blocos e agremiações, bem como Baile Municipal, corredores da folia e até mesmo polos infantis. Sendo assim, a suposta “diferença” entre valores inexiste caso os cálculos sejam executados sobre o ciclo carnavalesco como um todo e não apenas sobre o recorte feito via LAI", diz.
"Todos esses investimentos estão descritos no Portal da Transparência bem como foram publicizados através do Diário Oficial do município. A festa mais democrática e inclusiva da cidade teve mais de 2,8 mil atrações - sendo 98% dos artistas contratados locais - injetou mais de R$ 2 bilhões na economia da capital pernambucana e gerou cerca de 50 mil postos de trabalhos temporários."
Comissão de Avaliação Artística
Sobre a questão da Comissão de Avaliação Artística, a Prefeitura informou que "a Comissão instituída tomou uma decisão, por unanimidade, e considerando a ausência de Carnaval nos anos anteriores, em razão da pandemia, por inabilitar apenas os proponentes que não comprovaram seus histórico".
"A flexibilização pontual buscou ampliar a possibilidade de participação na grade do maior número de artistas com trajetória e projetos analisáveis, observando os quesitos de pontuação do edital. Para estes grupos e artistas que já foram habilitados do ciclo de 2023, a avaliação permanecerá válida por mais um ciclo, conforme previsto na Convocatória para 2024", diz a nota.
Para novos inscritos no Ciclo Carnavalesco de 2024, a Prefeitura diz que “a avaliação artística terá por objetivo definir o enquadramento da proposta inscrita ‘abaixo’ ou “acima” do ponto de corte, não havendo atribuição de nota individual final para cada proposta avaliada e, consequentemente, não gerando ranqueamento entre elas, permitindo que os proponentes estejam em condições equilibradas na análise final”.
"Também para este próximo ciclo, estão em estudo mecanismos que permitam ampliar a escuta da sociedade no processo de construção do Carnaval, sendo esta uma prática presente no processo de construção de editais ou mesmo atualização ou proposição de leis, como no caso do SIC (Sistema de Incentivo à Cultura) e da isenção tributária para agremiações de cultura popular. O objetivo é, de forma contínua e crescente, ter no diálogo propositivo, pautado pelos interesses coletivos, uma fonte para aperfeiçoamento de processos e produtos", finaliza.