NOVEMBRO BREGA

Brega vive reviravolta após décadas de exclusão pelo poder público

Da "Lei do Brega" em Pernambuco até a patrimonialização no Recife, cena cultural periférica vive um novo momento após organização coletiva de artistas, produtores, empresários e políticos

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Emannuel Bento

Publicado em 17/11/2023 às 0:00 | Atualizado em 22/11/2023 às 15:33
Michelle Melo no show Cidade do Brega, no Marco Zero, durante o Carnaval do Recife - PEU RICARDO/PCR

"A maior característica do brega é a perseverança. Quando tudo diz não, a gente sabe que só depende de nós. Hoje, estamos sendo exaltados. Nós, que já fomos tão machucados, tão maltratados, tão humilhados, hoje estamos sendo exaltados por nunca termos desistido do nosso sonho e do nosso movimento".

A fala é da cantora Michelle Melo durante o anúncio da programação do festival Novembro Brega, realizado pelo Galo da Madrugada com apoio da Prefeitura do Recife, na Praça Sérgio Loreto, Centro do Recife, entre 17 e 19 de novembro.

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Agregando vários artistas e empresários dessa cena musical, a coletiva de imprensa para o anúncio tinha um certo ar de celebração. Isso porque o festival foi visto como mais um passo no encontro entre o poder público e a música brega, uma relação por muito tempo marcada por tensões.

As mais diversas manifestações culturais, até mesmo as mais prestigiadas na atualidade, construíram relações com o poder público ao longo da história. Nesse sentido, a música brega costumou ser alvo de exclusão. Em Pernambuco, esse contexto tem mudado bastante nos últimos seis anos.

Histórico

SÍMBOLO Estátua do rei Reginaldo Rossi no Pátio de Santa Cruz, Centro do Recife - MARCOS PASTICH/PCR

A própria origem da música brega explica o porquê desse distanciamento. Segundo o historiador Paulo César Araújo, o termo "brega" começa a ser divulgado na imprensa nacional a partir da década de 1980 para designar pejorativamente cantores românticos que começaram a fazer sucesso na esteira da Jovem Guarda.

Seria uma música romântica considerada de "baixa qualidade", com composições e formas de cantar que expõem exageros dramáticos ou ingênuos, que não agradavam a perspectiva de críticos musicais, jornalistas e músicos oriundos das classes médias. Tratava-se, então, de uma estética "popularesca", direcionada para a população de baixa renda.

Ao mesmo tempo, é possível afirmar que a política cultural do Estado de Pernambuco se desenvolveu com um olhar mais atento para uma cultura popular próxima da tradição folclórica. Basta lembrar das passagens de nomes como Ariano Suassuna, idealizador do Movimento Armorial, pelas pastas de cultura do Recife (1975-1978) e do Estado (1994-1998 e 2007-2010).

Lei do Brega

Em Pernambuco, a cena brega vem se desenvolvendo desde os anos 1980, passando por diferentes fases. Contudo, o ritmo sempre esteve fora dos ciclos festivos do Governo do Estado, por exemplo, até a pouco tempo. A discussão para essa inserção apenas ganhou força nos anos 2010.

Amigas do Brega em show no Festival de Inverno de Garanhuns de 2019 - FELIPE SOUTO MAIOR/FUNDARPE

"Essa relação mudou por dois motivos mais claros. O primeiro foi uma maior aceitação do público com todas as vertentes do brega, sejam os mais antigos ou os mais novos. Essa relevância que o brega vem ganhando nacionalmente impulsiona uma vontade por transformação por parte de quem faz o brega e uma atenção maior por quem faz o poder público", aponta Victor Azevedo, museólogo, músico e mestrando em antropologia (UFPE) que pesquisa sobre a patrimonialização do movimento Brega no Recife.

"O segundo motivo, e esse realmente fez grande diferença, foi a organização coletiva de artistas, produtores e agentes desse meio que envolve o brega e a chegada de políticos apoiadores da causa disso que hoje chamamos de Movimento Brega."

Uma vez que a cena se organizou, a primeira virada para a mudança ocorreu em 2017, com o advento da "Lei do Brega", uma lei estadual de autoria do então deputado Edilson Silva, que considerou o brega expressão cultural do Estado (Projeto de lei 16.044/17 alterou a Lei 14.679/14). Após isso, o gênero pôde participar das festividades promovidas pelo governo estadual.

CARNAVAL DO RECIFE Priscila Senna durante abertura do Marco Zero em 2022 - CAMILA LEÃO/PCR

Desde então, o ritmo tem, por exemplo, um dia dedicado no Festival de Inverno de Garanhuns. Um movimento similar ocorreu por parte da Prefeitura do Recife, que, em 2020, realizou show da cantora Priscila Senna no palco do Marco Zero, o mais nobre do Carnaval da cidade. Desde 2022, o palco tem um show intitulado "Cidade do Brega", agregando vários artistas.

"O brega historicamente é atravessado por estigmas. Nesse primeiro momento de valorização, teve uma primeira adesão ao brega romântico, a coisa da experiência nostálgica. Na virada de 2019, quando o brega se capilariza mais nas redes digitais, ele passa a ser um importante ativo político. João Campos, o atual prefeito do Recife, fez uma leitura muito sagaz do ativo do brega politicamente", comenta Thiago Soares, autor do livro "Ninguém É Perfeito e a Vida é Assim: A Música Brega em Pernambuco" (2017).

Patrimonialização

Marco Aurélio Filho, João Campos, Palas Pinho, Eliza Mell e Danny Myller na sanção da lei que tornou brega patrimônio cultural imaterial do Recife, em 2021 - PASTICH

É nesse contexto da aproximação da política institucional que o brega ganhou o título de patrimônio cultural imaterial da cidade do Recife, em 2021. A Lei 18.807/21 foi de autoria do vereador Marco Aurélio Filho, que também lidera o movimento "Respeita o Meu Brega" e participou da criação do festival Novembro Brega junto à diretoria do Galo da Madrugada.

Em 2022, foi a vez da aprovação do Projeto de Lei que instituiu no calendário Oficial do Recife o "Novembro Brega", mês dedicado à valorização do Movimento Brega, também de autoria de Marco Aurélio Filho.

"Depois de 2021, o brega passa a gozar de alguns privilégios pelo título de patrimônio. No primeiro momento da valorização, o brega-funk foi um pouco hostilizado, mas desde 2020 ele vem ganhando realmente força e protagonismo nesse cenário, chegando a ocupar palcos nobres do carnaval. Acho que existe uma relação de interesse mútuo: o poder público tem interesse no brega por questões culturais e de contato com as periferias, enquanto o brega naturalmente tem interesse em ampliar o seu aspecto de mercado e atuação", diz Soares.

Conde Só Brega no show Cidade do Brega, no Marco Zero, durante o Carnaval do Recife - PEU RICARDO/PCR

Victor Azevedo opina que, embora ainda recente, a patrimonialização pode gerar muitos ganhos para o gênero e todas as pessoas envolvidas nesse meio cultural e econômico.

"Um exemplo muito bom de efeitos dessa patrimonialização foi a inserção do no Carnaval do Recife, como um dos protagonistas, ou da relação com o Galo da Madrugada a partir do festival Novembro Brega e a homenagem do Galo em 2024 a Reginaldo Rossi. Outros exemplos são as discussões feitas sobre o brega em festivais como o Rec'n'play e Coquetel Molotov. O apoio mais consistente do poder público a festas públicas de brega na periferia também é um fator que vem se consolidando a partir da patrimonialização do movimento", diz o pesquisador.

Próximos passos

Apesar da inclusão do brega nas festividades, ainda existem outros aspectos que precisam ser mais desenvolvidos após a patrimonialização.

"O poder público pode promover espaços de discussão sobre o movimento brega, sua história e patrimonialização, usando vários segmentos da sociedade para falar sobre a importância de compreender essa expressão cultural, já que mesmo com o reconhecimento, é possível existir resquícios de preconceito no âmbito escolar", diz Frederico Neto, mestrado profissional em ensino de História que pesquisa o brega enquanto recurso didático para o ensino da disciplina.

"Já que é reconhecido como expressão cultural e patrimônio imaterial, não pode o movimento brega se restringir apenas ao espaço musical dos eventos públicos, é necessário ocupar mais espaços e é principalmente na escola que podemos falar sobre educação intercultural, diversidade, empreendedorismo, inovação, é onde está a juventude potente dessa cidade, nesses quesitos ainda existem algumas carências de projetos do poder público", continua.

Anderson Neiff no show Cidade do Brega, no Marco Zero, durante o Carnaval do Recife - PEU RICARDO/PCR

Victor Azevedo reforça que toda a patrimonialização visa uma continuidade. Para ele, é preciso trabalhar em duas frentes: a preservação da memória do Movimento Brega a partir de um equipamento específico para tal, onde se possa trabalhar a divulgação desse patrimônio a partir de acervos, exposições e atividades diversas. E em segundo, um trabalho de consolidação do brega nas periferias.

"O vereador Marco Aurélio Filho já sugeriu a criação de um estúdio voltado para o Brega no Compaz que está em desenvolvimento no Ibura. Isso foi reforçado pelo prefeito João Campos em entrevista. Caso essa medida seja efetivada, é um passo importante para a produção de músicas com o apoio do poder público, mas sobretudo pela inserção de jovens no mercado de trabalho a partir do brega", diz.

"Lá, poderiam haver aulas sobre produção musical, canto e outros instrumentos, criação de beats, de como operar o próprio estúdio, oficinas de composição. Esses tipos de trabalhos, com caráter educativo e de permanência, são essenciais para um patrimônio se manter ao longo dos anos e construir cidadãos comprometidos com a valorização dele. Essas medidas ainda estão em falta, mas devem ser o próximo passo."

* Essa é a primeira reportagem de uma série em celebração ao Novembro Brega. Confira as demais matérias:

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