"Ela não te quer, ela não te ama / Só tá por interesse do ouro, fama e grana". "Tô indeciso na morena ou na ruivinha / Só que as duas também é minha amiguinha / No golf dopado, tô cheio de maldade / Que é na afinidade, atrás de baile".
O primeiro verso é dos MCs Sheldon e Boco na faixa "Nós Gosta de Novinha", um brega-funk lançado há 14 anos. O segundo é de Anderson Neiff e Danilo Chatinho em "Sigilo Perigoso", sucesso do ritmo no ano passado. É possível encontrar similaridades nos trechos: menção às mulheres, ostentação e luxúria. Na sonoridade, porém, as faixas são bastante diferentes.
Em "Nós Gosta de Novinha", o brega-funk vivia as suas experiências iniciais. A base já estava lá: um brega mais acelerado, repleto de sintetizadores e beats eletrônicos meio rudimentares, além de um modo de cantar mais "falado" dos MCs. "Sigilo Perigoso", por sua vez, mergulha o ouvinte em um leque variado de batidas e em vocais distorcidos por autotune. É uma produção mais complexa e amadurecida.
Esse paralelo serve para mostrar como o brega-funk se transformou ao longo desses anos. Há quem pense, inclusive, que o gênero é um fenômeno bem mais recente. Ou até que o ritmo nasceu junto com o passinho, dança popularizada em 2019.
Apesar da falta de uma historiografia mais precisa, a verdade é que brega-funk já vem construindo uma trajetória, passou por muitas transformações e enfrenta desafios para se consolidar enquanto um ritmo nacional.
Experimentações
Como era o brega-funk no começo? Quem explica é Dany Bala, produtor musical que ajudou a consolidar o ritmo:
"Naquela época, a gente não procurava influências para poder produzir, porque a maioria dos MC's já vinham do funk daqui de Pernambuco. Ao mesmo tempo, a gente já tinha o brega romântico. O que fazíamos era: acelerar o BPM (batidas por minuto) do brega e, ao invés de colocar um kit de bateria mais acústica, usamos kits eletrônicos e abusamos dos sintetizadores. Isso já dava uma característica diferente para a sonoridade."
Dany Bala trabalhou com todos os MCs pioneiros: Metal e Cego (Posição da Rã, que foi sucesso em todo o Nordeste), Sheldon e Boco (Beijo de Tabela), Afala e Case, Dadá Boladão (Revoltada, regravada por Solange Almeida com Ivete Sangalo), Tocha (Devassa) e Menor. Nessas faixas citadas, Dany e os MCs realizaram diversas experimentações.
"A gente começou a buscar novas sonoridades. Eu estava muita música dominicana e reggaeton, então comecei a buscar esses elementos de lá. A batida foi sofrendo essa mutação, mudando aos poucos. A gente sentiu, em determinado ponto, a necessidade de acelerar mais, depois de reduzir o BPM. Isso foi ocorrendo naturalmente”, diz o produtor.
"Conseguimos emplacar muita música, ao mesmo tempo em que tinham músicas que nem saíam do estúdio porque os artistas não se identificavam. Foram tentativas e acertos, mas acho que acertamos mais do que erramos."
Em 2018, quando já existia toda essa cena consolidada, pela primeira vez o brega-funk emplacou um sucesso nacional: "Envolvimento", de MC Loma e as Gêmeas Lacração. Com os holofotes virados para Pernambuco, produtores pernambucanos como DG, Batidão Stronda e o próprio Dany Bala migraram para empresas de funk de São Paulo. Ao mesmo tempo, o acesso à produção musical aumentou e o terreno ficou fértil para o surgimento de novas batidas.
Passinho
O passinho, que se popularizou entre o fim de 2018 e o começo de 2019, marcou uma nova fase do brega-funk. É o começo do uso de batidas metálicas e repetitivas que evocam esse "dançar" - ressaltando o protagonismo da dança nesses processos inventivos.
"O brega-funk de hoje é mais identificado com essa sonoridade da lata, da caixa, o 'tá tá tá', com uma levada em lembra, em algum grau, o reggaeton atual", diz o produtor musical Tom BC, que mantém um estúdio no Alto José do Pinho, Zona Norte do Recife, com Marley no Beat.
Marley, inclusive, emplacou um dos primeiros hits da tendência do passinho: "Tomo na Ppk", de Shevchenko e Elloco, um hit do carnaval de 2019. "Esse tipo de batida do passinho ainda não estava rolando na época. Era o começo disso, muita coisa era novidade. Cada produtor trazia uma batida: o JS Mão de Ouro, o Barca Na Batida ou eu, cada um com o seu estilo", diz Marley no Beat.
"O Dany Bala levava para as músicas muitos elementos tocados, pois ele é músico. Tinham instrumentos tocados como guitarra e teclado. Hoje em dia, tudo se tornou mais eletrônico, com uso de VST (Virtual Studio Technology). O brega-funk hoje mantém a batida do passinho com novos elementos: viradas, caixa e baterias diferentes."
O jornalista e pesquisador GG Albuquerque aponta que o estilo da batida do brega-funk pode mudar em questão de meses. "É difícil ter um referencial por isso, mas, de modo geral, eu diria que percussões ficaram mais sincopadas, mais complexas e com mais movimento mesmo."
"Se olharmos as produções do John Jonhis, elas usam um monte de tambores diferentes, que sempre entram em momentos muito inesperados para o ouvinte. É justamente para aumentar a complexidade para a galera que dança o passinho. Talvez a marca seja uma influência maior do passinho sobre os produtores na hora de montar a estrutura rítmica dessas músicas."
Impacto do Tiktok
Uma vez que o passinho se tornou um elemento viral nas redes sociais, ele seguiu influenciando essas transformações. Em 2020, o TikTok se consolida no Brasil e as faixas começam a trazer cada vez mais efeitos que evocam novos passos para as coreografias nesse aplicativo.
"No começo, esses efeitos não eram propositais. Nós colocamos e o pessoal fazia a coreografia por cima. Hoje em dia a gente já cria a música pensando na dança. Por exemplo, um dos brega-funks que fiz com Neiff, 'Ela Já Tá Louca', se voltou todo para a dança. Anitta dançou. Uma das maiores tiktokers do mundo dançou. Saiu no perfil do Barcelona. Temos um disco de platina por essa música, que quebrou barreiras", diz o produtor John Johnis.
Uso de 'acapelas'
Outro fenômeno importante do brega-funk atual (e que não existia no começo) é o uso das "acapelas", que são as vozes isoladas de refrãos de funks de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Com essa estratégia, os produtores e MCs criam alguns versos, mas deixam sempre esse refrão externo como destaque, quase como uma espécie de remix.
"O brega-funk está sintonizado com as transformações desses três Estados. Isso é possível perceber tanto as gírias, que são apropriadas e transformadas, nas parcerias com MCs de lá e em alguns elementos musicais específicos que eles usam", diz GG Albuquerque.
Apesar de chamar a atenção de ouvintes de todo o país por conta desses funks "nacionais", o uso das acapelas também tem ocasionado casos de desentendimentos por direitos autorais e arrecadação por reproduções em plataformas, como exemplifica John Johnis.
"Com ‘Ela Já Tá Louca’, aconteceu algo inesperado. A gente tinha a autorização da voz da acapela da música, mas o pessoal de lá (do Sudeste) voltou atrás. Isso acontece: quando a música 'estoura', o pessoal que canta o refrão, mesmo que combinado, pode mudar de ideia. A música era eu, Neiff, um menino de São Paulo e outro de Belo Horizonte", diz, em menção a Kaio Viana e MC CJ.
"Quando começou a estourar, ele quiseram mais porcentagem, como se tivéssemos feito uma versão pirata da música. Então, eu publiquei uma nova música, só com o instrumental. Essa versão também rodou o mundo."
Desafios
A fala de John Johnis sobre problemas de autoria esbarra em um desafio constante do brega-funk hoje: a busca pela originalidade. Se por um lado a democratização da produção musical aumentou, o grande número de pessoas produzindo também tem tornado as faixas cada vez mais similares.
"Hoje, a coisa mudou. Tem produtor para todo lado, em cada garagem. É bem difícil fazer algo diferente por conta dessa concorrência toda. Mas, pode rolar de ocorrer um dia. A pessoa estar inspirada e fazer algo diferente. É possível”, diz Marley no Beat.
Dany Bala ressalta o fácil acesso aos equipamentos atualmente. "Isso vai acarretando também em novos artistas. Ao mesmo tempo, essas pessoas entram no movimento sem experiência. Antes, estudávamos para poder colocar algo para o público. Hoje em dia, a turma coloca para o público, enquanto estuda ao mesmo tempo. Isso acarreta em produções iguais", diz Dany.
"O negócio fica um pouco descartável e reciclado. São produções recicladas. Mas, eu também acredito que isso vá mudar com o tempo. Eu ainda acredito e vejo com bons olhos um futuro para o brega-funk."
Jonh Johnis, por exemplo, tem criado um repertório para o carnaval para o MC Tróia sem o uso de 'acapelas'. "Estamos com gravando Dynho Alves e Felupe, além de um feat. com Anderson Neiff. Em todas, é a gente cantando. Estamos fazendo isso aos poucos, até o momento que não precise mais da acapela", diz.
Acima dos dilemas estéticos, o produtor aponta a superação do preconceito como o maior desafio dessa cena musical.
"É a questão conseguir entrar em qualquer ambiente. No Festival Novembro Brega, tocamos de 19h do sábado, mas era para ser de 21h. O povo tem aquela coisa do medo, porque poderia acontecer algo. Quando vamos produzir, muita gente também não se atenta às palavras que podem ser usadas. Dá para fazer uma música de duplo sentido e dançante, mas sem palavrão algum. No geral, o preconceito ainda acontece."
* Essa é a quarta e última reportagem de uma série em celebração ao Novembro Brega. Confira as demais matérias: