No dicionário, "bagaceira" pode significar "aguardente", um "conjunto de coisas sem valor" ou a "parte mais pobre da sociedade". Dona Onete, uma das mais representativas vozes da cultura popular do Pará, dá uma explicação mais profunda para a palavra:
"Nos tempos antigos dos engenhos de cana-de-açúcar em Igarapé-Miri (PA), a 'bagaceira' era uma expressão usada pelos caboclos. Era sobre aquelas festas depois do baile oficial, longe dos olhares críticos da sociedade. O povo dançava descalço, com a sua curtição, à sua maneira. Era uma festa sem os refinamentos da alta sociedade", conta.
"Bagaceira" também é o título do mais novo álbum da "diva do carimbó chamegado". O lançamento ocorreu em 18 de junho, durante a celebração de 85 anos da cantora, que transitou entre Belém e Igarapé-Miri durante a sua vida e trajetória artística. O disco busca transmitir essas vivências, sendo repleto de histórias e significados a cada uma das 10 faixas.
Viagem por ritmos
A faixa-título do álbum presta uma homenagem às festas do interior e à vida na região rural. Contudo, o álbum é plural e faz uma viagem por diversos gêneros musicais do Pará e da Amazônia.
Onete sempre quis colocar no mundo um projeto que pudesse ser tocado nas diversas paisagens urbanas e sonoras do Estado: as festas do interior, as festas de aparelhagem do tecnobrega e as festividades na beira do rio.
"A festa do interior do Pará é uma bagaceira. Você chega, dança, come, bebe, pensa que acabou a festa, volta pro salão, dança, o sol nasce e a festa ainda não terminou. E, quando vai terminar, os ribeirinhos pegam o barco e continuam a festa no Ver-o-Peso".
A atmosfera festiva do carimbó está presente em "Curió Cantador" e "Festa de Ver-O-Peso", por exemplo.
Popular
"Bagaceira" também tem banguê, carimbó e lambada, unindo ritmos que por muito tempo foram separados entre "cultura popular folclórica", com maior valorização e reconhecimento do poder público (como o carimbó), e "cultura popular de massa" (o brega).
Essa "hierarquia" teria sido superada no Pará? "Olha, não tinha parado para pensar nisso, mas o carimbó, o brega, a lambada e outros ritmos do Pará são respeitados por todos, pela classe artística, pelo povão. Então, acho que o Pará está na dianteira sim neste sentido. Nós temos muito orgulho dos nossos ritmos, da nossa cultura e da nossa história", diz Onete, ao JC.
"Eu amo Pernambuco, Recife, Olinda. Tenho fãs muito carinhosos dessa terra. Sou fã de Lia de Itamaracá e de muitos outros artistas de Pernambuco. Como o Pará, Pernambuco também é uma fonte muito farta para a cultura brasileira."
Produção
Onete também assumiu um papel central na produção do álbum. Um exemplo marcante é "Curió Cantador", um carimbó cuja letra foi contada e dirigida por ela. A faixa-título também volta a fazer uma referência ao Pitiú, citada no sucesso "No meio do pitiú", que a apresentou ao Brasil.
"O Pitiú é aquele cheiro do peixe que tem no Ver-o-Peso. Que fica quando os barqueiros chegam com o peixe, fica aquele cheiro forte do peixe. Isso que é o pitiú. E eu canto o Pitiú porque o Ver-o-peso é o meu palco, é onde acontece o dia a dia da gente aqui, a feira, o movimento, onde tá todo mundo", diz.
"O Ver-o-Peso é uma parte da minha vida, sou frequentadora, compro meus banhos de cheiro, compro meu peixe com açaí. Faço questão de cantar e convido todos a conhecerem esse lugar mágico."
Rock in Rio
Com tanta riqueza musical, Dona Onete não deixou de se manifestar sobre a ausência de artistas nortistas na programação do Rock in Rio, que dedicou um dia à música brasileira em sua edição de 40 anos. Gaby Amarantos e Fafá de Belém foram algumas das artistas que se pronunciaram sobre o caso.
"Fiquei indignada como todos os artistas paraenses. Parece que deu um branco né? Teve o Pará Pop no Rock in Rio, foi em 2019, e foi um sucesso. E agora eles quiserem homenagear a música brasileira e esqueceram o Pará, o Norte. Ainda bem que todo o movimento os fez mudar de ideia", diz.
"A música daqui tem se destacado nos últimos anos, com uma produção muito ativa, rica. Todo lugar que vou, que toco, sou muito bem recebida. As pessoas fazem uma festa, dançam, cantam. Além dos espaços que são escassos pelo Brasil, eu tenho um convite: venham para o Pará. Venham dançar e cair na Bagaceira aqui."