CINEMA

Em "Rio Doce", Okado do Canal vive um jovem fragilizado, e não 'o brabo', num drama familiar situado entre o bairro de Olinda e o Recife

Primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Fellipe Fernandes teve pré-estreia no Janela Internacional de Cinema do Recife e entra em cartaz em breve

Imagem do autor
Cadastrado por

Romero Rafael

Publicado em 20/07/2022 às 11:22 | Atualizado em 22/07/2022 às 22:08
Notícia
X

Um ator do filme Rio Doce, de Fellipe Fernandes, morador do bairro homônimo, em Olinda, comentou que "não imaginava que o filme fosse tão Rio Doce". Ao ver o longa finalizado e na tela, constatou que o bairro mais populoso da cidade-irmã do Recife — com mais de 40 mil habitantes, segundo o Censo 2010 — é não só locação, mas também atmosfera das situações e alma dos personagens que o diretor apresenta em seu primeiro trabalho de longa-metragem. Há um 'terroir'.

Programado para estrear nos cinemas neste segundo semestre, Rio Doce foi exibido na noite de segunda-feira (18), em sessão de pré-estreia na programação do Janela Internacional de Cinema do Recife, que faz edição especial até domingo (24). A exibição foi particularmente bonita porque reuniu no — especialíssimo — Cineteatro do Parque, na Boa Vista, boa parte da equipe do longa e seus familiares. A gente, plateia, saberia logo em seguida que o trabalho é bastante sobre família e familiaridade.

Fellipe Fernandes — que saiu premiado do festival Olhar de Cinema (Curitiba), da mostra Première Brasil Novos Rumos, no Festival do Rio, e do Festival de Cinema Latino-Americano de Toulouse — contou, logo após a sessão, que "busca entender as histórias que uma paisagem pode contar". É provável que por isso ele nomeie o bairro e situe a gente na geografia da Região Metropolitana do Recife; e também por isso coloque seus personagens num Game Station, numa pastelaria do comércio chinês no Centro da cidade, numa caminhada pela Boa Vista.

Os personagens são constituídos por onde eles habitam e transitam: seja em Rio Doce e em trânsito pelo Centro do Recife, seja na Zona Norte da capital pernambucana.

Melodrama atualizado

A câmera de Rio Doce acompanha Tiago (Okado do Canal) às vésperas de completar 28 anos. Ele está sem energia elétrica em casa, por falta de dinheiro, e vive uma relação em distanciamento com a filha de quatro anos. Queixa-se, ao longo do roteiro, de dores nas costas. Essas dores e também uma névoa acinzentando a fotografia metaforizam bem o estado de espírito do protagonista, que é surpreendido por uma carta e uma fotografia com poderes de refazer uma história de paternidade.

"Meu interesse de contar essa história vem de um certo flerte meu com o melodrama — mas numa adaptação da ideia de melodrama —, porque, no fim das contas, eu fui formado muito mais na televisão do que no cinema", falou Fellipe Fernandes sobre a intenção de fazer um drama — não um dramalhão — de família. "Tem lá [no filme] uma vontade de contar uma história, de ter diálogos, personagens, cenas para que a dramaturgia se desenrole."

DIVULGAÇÃO
ELENCO Okado do Canal e Nash Laila em cena de Rio Doce, filme de Fellipe Fernandes - DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
CINEMA PERNAMBUCANO "Rio Doce", filme de Fellipe Fernandes - DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
CINEMA PERNAMBUCANO "Rio Doce", filme de Fellipe Fernandes - DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
Cena de "Rio Doce", de Fellipe Fernandes - DIVULGAÇÃO

Embora o filme comece num ritmo lento que não adianta o tanto que vai crescer e envolver o espectador, minutos depois a montagem encadeia cenas curtas e personagens laterais, mas luminosos, como a vizinha Dona Aurinha, interpretada pela atriz Maita Melo, que é tia do diretor. "Grande parte da força do filme está neles. E foi um processo muito colaborativo, nenhum personagem existe sozinho."

"Coisas da vida de Tiago se cruzavam com a minha vida"

O elenco todo brilha, com destaque para o rapper Okado do Canal. Em um de seus primeiros trabalhos no cinema, emprestando a Tiago um olhar perdido e melancólico, ele sustenta no semblante o drama pessoal do personagem por praticamente todo o filme. É interessante a presença, num drama familiar, de um jovem homem preto heterossexual assumidamente fragilizado, vulnerável, sem performar 'o brabo' em momento algum. E é interessante também que, embora haja uma ex-companheira no universo dele, seu drama não perpassa por relações afetivo-sexuais.

Okado do Canal disse, após a exibição, que, mais do que o olhar, emprestou todo o corpo ao personagem. Contou que, desde o teste, notou as intersecções entre os dois. "Eu comecei a perceber coisas da vida de Tiago que se cruzavam com a minha vida." Nesse ambiente de correspondência, surgiu abertura para improvisar no texto.

"Só tive que acessar coisas que eu, como um preto periférico, não me permitia acessar: alguns sentimentos, algumas sensações." Como é comum aos homens — não a este, neste drama renovado.

Programação do Janela

A programação da edição especial do Janela Internacional de Cinema do Recife segue até domingo (24), com sessões e aulas no Cinema da Fundação do Derby. Nesta quarta-feira, às 16h, haverá uma conversa sobre o filme A Rainha Diaba (1974), com o diretor, Antonio Carlos da Fontoura, e Débora Butruce, profissional dedicada à preservação de filmes, responsável pela digitalização da obra, numa iniciativa do Janela com a organização Cinelimite e o laboratório Link Digital/Mapa Filmes.

Às 18h15, será exibido o filme "Rio de Grama" e às 19h45, "Movimentos Noturnos", ambos da cineasta estadunidense Kelly Reichardt. Uma das mostras desta edição do Janela é feita da filmografia da realizadora que, a partir dos dramas íntimos deos seus personagens, desbrava a identidade dos EUA, desde a colonização.

Às 19h, online, Antonio Pitanga participará de uma aula, pela plataforma Indeterminações, com mediação de Lorenna Rocha e Gabriel Araújo. O tema é "Cinema que ginga".

A venda de ingresso inicia sempre uma hora antes da sessão. No Cinema da Fundação custa R$ 7 (preço único), às terças; R$ 14 (inteira) e R$ 7 (meia), da quarta-feira ao domingo, com acesso gratuito para professores às quartas.

Tags

Autor