Música

Sofrência é tema recorrente na música, de Marília Mendonça a Frank Sinatra

Chico Buarque e Francis Hime assinam a maior sofrência da MPB

José Teles
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José Teles
Publicado em 09/03/2020 às 19:49 | Atualizado em 10/03/2020 às 7:11
REPRODUÇÃO/YOUTUBE
Marília Mendonça, a rainha da sofrência no sertanejo - FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE

O homem não precisou nem dizer ia embora de vez. Estava explícito em seu olhar. A mulher, que entendeu de imediato, agarrou-se a ele, que tentava se afastar, enquanto ela insistia na sua permanência. Debruçou-se sobre o o corpo dele, arrastou-se a seus pés, o arranhou, agarrou-se nos cabelos do homem que amava, segurou-lhe os pés. Em vão. Esvaiu-se em lágrimas atrás da porta. Em seguida, injuriada, passou a difamá-lo, a desejar, a todo preço, se vingar, uma espécie de adoração pelo avesso.

Todo este drama exacerbado está na letra de uma canção de sofrência excessiva. Mas não da lavra de um dos muitos astros e estrelas atuais que fizeram da "roedeira" um meio de atrair milhares de pessoas, com rimas fartas em lugar comum, melodias repetitivas, canções que aplicam uma fórmula empregada até que o consumidor perca o interesse. A canção em que o desespero pelo abandono da pessoa amada foi descrito acima é de autoria de dois dos mais refinados artífices da MPB, Chico Buarque e Francis Hime.

Um trecho da letra: “Quando olhaste bem nos olhos meus/E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei/Eu te estranhei, me debrucei/Sobre o teu corpo e duvidei/E me arrastei, e te arranhei/E me agarrei nos teus cabelos/Nos teus pelos, teu pijama/Nos teus pés, ao pé da cama/Sem carinho, sem coberta/No tapete atrás da porta (...). Elis Regina tem uma interpretação pungente desta “sofrência” descrita com palavras afiadas e elegantemente dispostas. Provavelmente a canção mais dramática do repertório da MPB.

Porém, há sofrências e sofrências. A jovem cantora, de Goiás, Marília Mendonça, a Rainha da Sofrência, não é de muito requinte nas letras de suas músicas, um subgênero no chamado sertanejo universitário. Na apropriadamente intitulada Todo Mundo Vai Sofrer exprime o mesmo sentimento da moça deixada para trás em Atrás da Porta, porém numa maneira que poderia ser rotulada barraco brega:A “E eu preciso da cerveja/Igual eu preciso dele/Na minha vida/Mas quanto mais eu vou atrás/Mais ele pisa”.

A canção popular é o veículo mais empregado para se extravasar dor de corno, ou “de roedeira”, como se dizia nos tempos do samba canção, em que o tema era recorrente. Um especialista foi o recifense Antônio Maria, que sofreu um infarto quando seu grande amor, Danusa Leão, voltou para o marido, o jornalista Samuel Weiner. Desabafava o desamor criando clássicos continuamente regravados. Na pouco conhecida Pense em Mim (lançada em 1954, por Isaurinha Garcia) sintetiza a falta que o amor lhe faz. Chega a ser patético nos versos finais: Em sua vida/Quando não houver mais nada/Pense em mim”.

Contemporânea, e companheira de mesa de bar de Antonio Maria, a carioca Adiléia Silva da Rocha, ou Dolores Duran, foi especialista em música de sofrência, a exemplo da antológica Castigo: “Eu tive orgulho e tenho por castigo/A vida inteira pra me arrepender/Se eu soubesse/Naquele dia o que sei agora/Eu não seria esse ser que chora/Eu não teria perdido você”. Castigo foi composta em 1959, ano em que Dolores Duran morreu, assim como Antonio Maria, vítima de um infarto fulminante.

A sofrência do passado é quase sempre autoflagelante, responsabiliza-se pelo desamor, enquanto a atual, na sertaneja a atira a culpa no outro, geralmente o homem: “Iê iê iê, infiel/Agora ela vai fazer o meu papel/Daqui um tempo você vai se acostumar/E aí vai ser a ela a quem vai enganar/Você não vai mudar”, de Infiel, hit de Marília Mendonça. A carioca Maysa expressa-se com mais sutileza ao cantar situação semelhante: “Ouça, vá viver/Sua vida com outro bem/Hoje eu já cansei/De pra você não ser ninguém”, versos de Ouça, de 1958.

SINATRA

A sofrência não é exclusiva da música popular brasileira. Está tanto em óperas, quanto no tango argentino, no bolerão mexicano, ou na chanson francesa. Frank Sinatra gravou um álbum pioneiro em sofrência extrema, ao acabar o relacionamento com Ava Gardner. Em 1955, lançou um dos primeiros discos conceituais, senão o primeiro, In the Wee Small Hours, em que expressa sua dor de cotovelo a partir da capa, em que é visto, na esquina de uma ruela deserta, com um cigarro entre os dedos, meditativo. As canções do álbum expressam solidão, desamor, relacionamentos fracassados, depressão. Ao contrário de artistas de menos talento, Sinatra transformou dor em arte. In the Wee Small Hours é um dos melhores discos gravados no século 20.

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