“Oi, ró, tô com a voz assim porque eu tava chorando com saudade de Bia (sua filha) e da minha cachorrinha Flor, ela me mandou uma foto dela. Dá um abraço em André, diz que recebi o recado dele. Tô muito feliz, bem, na solidão do isolamento, sem esquecer dos verdadeiros amigos, e das pessoas que eu amo, principalmente os de Pernambuco, tô muito emocionado”. Transcrição da mensagem em áudio, enviada por Moraes Moreira, sábado, para a recifense Rosália Zirpoli, que integra uma turma de amigos com quem o baiano convivia sempre que estava no Recife.
Assim como Rosália, a morte de Antonio Moraes Moreira Pires, nascido em 8 de julho de 1947, em Ituaçu (BA), foi uma susto e uma má surpresa generalizada, para fãs e quem o conhecia. Moraes encontrava-se em sua casa na Gávea, Zona Sul do Rio, seguindo as regras do isolamento, mas, como áudio ratifica, sentindo o efeito da solidão forçada. Logo alguém tão gregário, de turma. Os Novos Baianos em verdade foram mais do que um grupo musical. Foram uma comunidade, sobretudo quando passaram a morar num sítio em Jacarepaguá, depois do sucesso nacional de Acabou Chorare, em 1972, que foi descoberto pela geração dos anos 2000, e obrigou o grupo a mais uma longa e demorada reunião, tocando o repertório do disco na íntegra.
No início do ano, em entrevista ao jornal O Globo, Moraes Moreira anunciava que montava um projeto de show, com vinte músicas inéditas, entremeadas de trechos de literatura de cordel, uma de suas paixões. Moraes costumava se jactar de ser membro da cadeira nº 38, da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, e chegou a escrever a história de os Novos Baianos no formato de cordel, com 161 estrofes e 966 versos, publicado em 2009.
Na mesma entrevista ele confessou que estava cansado de cantar as músicas de Acabou Chorare, e outros clássicos de Os Novos Baianos. No programa do show que apresentou em 2018, alertava para que ninguém o interrompesse pedindo para tocar Preta Pretinha, a música mais bem sucedida do grupo, que começou em 1967, em Salvador. Naquele ano Moraes Moreira conheceu Luiz Galvão, baiano de Juazeiro, na Pensão de Dona Maritó, na Rua Democrata, nº17, em Salvador. ‘Eram mais ou menos nove e trinta da manhã quando cheguei à pensão, e fui direto ao quarto de Moraes Moreira e Zé Walter seu Irmão, me recebeu. Moraes ainda estava acordando, mas fui logo falando que Tom Zé tinha me mandado lá , a gente estava fazendo música mas os tropicalistas chamaram pra São Paulo e ele profetizou a que a gente seria parceiros”, conta Galvão, que ficou dividindo o quarto com Moraes (o irmão foi para outro quarto). “Em quinze dias já tínhamos umas oito músicas prontas”
Por esta época a Bahia tinha virado destino de hippies, e entre estes estava uma adolescente de 16 anos, Bernadete Dinorah, que namorava um guitarrista da mesma idade, do conjunto os Leif’s, Pepeu Gomes. Sem dinheiro, os dois dormiam debaixo de uma ponte no Jardim Armação. Os Novos Baianos, logo depois do primeiro show em Salvador, no Teatro Vila Velha, em setembro de1969, foram para o Rio, depois São Paulo, contratados pela RGE, então dirigida por João Araújo (um dos mais importantes nomes dos bastidores da MPB, mas que ficou conhecido como o “pai de cazuza”).
Tom Zé teve papel importante na carreira dos conterrâneos nesta época, ajudou a que fossem contratados pela RGE, a empresa que João Araújo passara a comandar: “Carlos Imperial tirou eles da Bahia, largou eles no Rio, lá sem pai nem mãe, acabei sabendo, aqui em São Paulo. João Araujo, pai do Cazuza, naquele tempo tava brigado com as gravadoras do Rio, e veio pra Mocambo aqui em são Paulo. Foi produtor de alguns discos meus. Falei com ele que não queria me meter a indicador de coisas. Só pedia para que ele ouvisse aquela banda. Ele me atendeu. Quando foi na segunda-feira os meninos estavam em São Paulo num hotel, onde se hospedavam muitos artistas. João os levou ao empresário Marcos Lázaro (o mesmo de Roberto Carlos). Engraçado que quando fui fazer o filmes deles, era pra dar um depoimento, acabei pintando os canecos. Quando Moreira fez a entrevista do lançamento do filme, eu fui com eles pro programa do Jô soares”.
NOVOS BAIANOS
"A gente quebrou muito tabu, a maneira de ver o mundo, de buscar uma coisa mais universal. A própria chegada da tecnologia foi ajudando também, essas coisas foram andando juntas. Nós, Os Novos Baianos, vivemos radicalmente isso, quando moramos no sítio. Vivemos ali durante cinco ou seis anos. Foi legal, teve seus atritos, teve tudo, mas o saldo foi muito positivo. Era a ditadura, mas a gente estava ali no nosso estado de sítio, nos preservando contra polícia, contra tudo. Eles não podiam ver cabeludos, pessoas com roupas coloridas, de ideias diferente e a gente era tudo o que aquele sistema vigente não queria. Mas fomos sobrevivendo, driblando aqui, acolá, fazendo uma linguagem que eles não entendiam, e foi passando", contou Moraes, em entrevista ao JC, quando celebrava os 70 anos, em 2017, uma festa para centenas de convidados na Sede do Flamengo, na Gávea.
Futebol foi também uma das paixões que cultivou: ““ Sempre teve futebol na minha vida. Era colecionador da Revista dos Esportes, tinha umas 300 revistas, acompanhava tudo, sabia tudo dos craques. Adorava aquelas seções, O Craque na Intimidade, Bate-Bola com o Craque, adorava aquilo. Desde Ituaçu que me apaixonei pelo vermelho e preto, e escutava pela Rádio Nacional, Radio Tupi, Mayrink Veiga, conhecia os bairros do Rio através dos times, Gávea, Laranjeiras, Bonsucesso, Botafogo. Fiz duas canções pra Zico, uma pro Flamengo, e a Seleção Brasileira".
MUDANÇA
João Gilberto um dia apareceu de repente aos Novos Baianos, que ainda dividiam um enorme apartamento em Botafogo. Desta visita veio uma mudança de curso, do rock psicodélico para o samba de Acabou Chorare, um disco luminoso num clima político cinzento. Em 1975, no entanto, a utopia da comunidade dos Novos Baianos perdendo a energia, Moraes Moreira deixou o sítio, e foi morar com a mulher e o filho David num apartamento. Deixou também o grupo, e lançou o primeiro álbum solo naquele mesmo ano. Ao mesmo tempo aproximou-se do Trio Elétrico Dodô & Osmar, tornando-se o primeiro cantor de trio (até então um grupo instrumental), e ganhando o primeiro grande sucesso, Pombo Correio (Double Morse, em parceria com Dodô e Osmar Macedo).
A partir do álbum Lá Vem O Brasil Descendo a Ladeira (1979) ele se tornou a estrela da vez da MPB, e do Carnaval baiano, até o advento da axé music, com um formato de que Moraes Moreira discordava. O carnaval dos trios elétricos era grátis, sem cordões de isolamentos. O novo Carnaval baiano era para as elites, criticou. A incompatibilidade com os grupos de axé o trouxe para Pernambuco: ““ Vivendo o carnaval do Recife em sua plenitude, me lembrava da Bahia, imaginando até que ponto valia a pena as inovações, o advento dos blocos de cordas e abadás, e consequentemente todo aquele monopólio que promovia de forma acelerada a padronização da festa”.
Na última década Moraes Moreira dividiu-se entre a carreira solo, o cordel e os Novos Baianos, redescoberto pela geração dos anos 2000. O Cordel tornou-se uma de suas paixões. Quando completou 70 anos, ele comentou na citada entrevista do JC: ““ A idade tira umas coisas, mas te dá outras. Para a velhice, usando esta palavra drástica, só há um jeito: tornar-se um sábio. Aquela coisa, quem corre é a bola, você se coloca melhor no campo. Você precisa ter a sabedoria de poder administrar a limitação física que a idade traz, compensar isto com a experiência, com a sabedoria. Por outro lado, a própria ciência hoje permite uma maior longevidade. Antigamente, com 50 anos, o cara já estava de pijama. Estou com 70 ainda na estrada".
Moraes Moreira sempre fazia música pra cima, raramente era nostálgico, e poucas vezes sobre morte. Mas vale ressaltar uma estrofe de seu cordel sobre as histórias dos Novos Baianos: “Se Deus me desse, meu povo/a chance do recomeço/seria esse meu plano/faria tudo de novo/me vejo, me reconheço/pra sempre um Novo Baiano”.