Um parecer elaborado pelos juristas Miguel Reale Júnior e Helena Regina Lobo da Costa, ambos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), afirma que o menino Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, foi deixado “à mercê da própria sorte” por Sarí Corte Real, em junho de 2020, antes de cair do nono andar de um dos prédios das Torres Gêmeas, edifícios de luxo no Cais de Santa Rita, no Recife.
A informação foi divulgada inicialmente pelo jornalista João Paulo Saconi, do jornal "O Globo".
O documento faz parte do processo em que a Justiça analisa acusações contra a ex-primeira-dama de Tamandaré, no Litoral Sul, Sarí Corte Real, patroa da mãe de Miguel à época da morte do menino. A criança estava sob os cuidados de Sarí quando entrou em um elevador, apertou diversos botões, subiu do quinto para o nono andar e, em seguida, após deixar o equipamento, despencou de uma altura de cerca de 35 metros.
“No momento em que omitiu o cuidado de vigilância, permitindo o fechamento da porta do elevador, tendo visto que a criança acionara botões de vários andares, consumou-se o crime de abandono. Não houve drible, não houve fuga. Houve abandono. As imagens das câmeras não deixam dúvidas de que a acusada deixou a criança ao léu, à mercê da própria sorte, em edifício no qual muitas eram as situações de risco a que estaria sujeita. (p. 22)”, diz um trecho do parecer.
“Dessa feita, verifica-se que a conduta da ré, a todo momento, revela sempre uma mesma constante: a do absoluto descaso em relação à integridade física e à vida de Miguel. Denota-se esse descaso previamente ao abandono, ao ter sido avisado pela filha de três anos sobre a saída de Miguel, enquanto estava distraída fazendo as unhas; durante o ato do abandono, ao desistir de segurar a porta do elevador, permitindo o seu fechamento; bem como após o fato, ao retornar ao apartamento, sem tomar qualquer medida para evitar o resultado lesivo, como acionar novamente o elevador para retornar ao seu andar, avisar à portaria sobre o ocorrido ou, ao menos, monitorar o painel do elevador para acompanhar o seu deslocamento", afirmam os advogados.
Os defensores argumentam que a conduta de Sarí ocasionou de maneira objetiva a morte de Miguel, já que essa seria, naturalmente, uma das consequências do abandono num local perigoso para uma pessoa da idade dele.
“Os elementos integrantes do tipo penal do crime de Abandono de Incapaz, acima analisados, estão presentes na conduta da ré, ou seja, o dever de vigilância assumido pela ré, o descaso com a vigilância e depois o momento consumativo do abandono consistente em ter deixado, consciente e voluntariamente, a criança de cinco anos seguir sozinha no elevador, no quadro de agitação em que se encontrava, sendo entregue à sua sorte, quando estava ao alcance dela ré, que omitiu, então, o dever de vigiar", alegam.
"Ainda, especificamente sobre o resultado morte, os pareceristas avaliam que não restam dúvidas, diante da análise das provas e da previsão legal a respeito, que a conduta de abandono de incapaz foi o que ocasionou a morte de Miguel. Para tanto, os pareceristas explicam que, objetivamente, a conduta de deixar uma criança com aquelas características (como a idade tenra e desconhecimento de como andar em um elevador) em um prédio que oferece diversos riscos objetivos (além das janelas, como a que Miguel subiu), poderia, objetivamente, levar à sua morte, como o que de fato aconteceu com Miguel", frisam os juristas.
“O agente responderá pelo resultado morte, decorrente do perigo causado, se ao menos poderia ter representado a possibilidade do evento morte, por lhe ser cognoscível38 a potencialidade da situação criada para vir a levar à morte da vítima, sendo factível passar-se do surgimento de um perigo à vida para uma lesão à vida”, dizem os advogados no parecer.
“Assim, não é relevante, para a imputação do resultado morte, que o agente não tenha previsto que, naquela situação, a vítima poderia morrer, mas sim que a ação, objetivamente observada, poderia levar àquele resultado”, acrescenta o documento.
“Se era possível a cognoscibilidade da evolução, como fruto da omissão do dever, de um perigo à vida para um prejuízo à vida, então, há responsabilização por este resultado mais grave em face de se ter atuado culposamente, como exige o art. 19 do Código Penal, não se prevendo o previsível, o naturalmente previsível, como no caso em exame”, finalizam.
Leia a íntegra
Outro lado
Em nota divulgada nesta quinta, a defesa de Sarí Corte Real se manifestou sobre o caso.
"Com o fim da instrução criminal que apura as circunstâncias do falecimento do menino Miguel, a Defesa de Sarí vem, em razão de notícias falsas veiculadas nas redes sociais, informar que nunca foi estratégia defensiva responsabilizar a criança por esse trágico acidente – muito pelo contrário.
Durante toda a audiência, Miguel foi tratado exatamente como o que ele era: uma criança normal, ativa e alegre.
Talvez tenha incomodado à Assistência da Acusação o fato de terem sido trazidas ao processo situações familiares desagradáveis presenciadas por testemunhas, que, entretanto, não serão veiculadas pela Defesa em respeito à memória da criança e por interessarem exclusivamente ao processo.
Compreender o contexto anterior a essa tragédia é completamente diferente de responsabilizar ou “adultizar” uma criança – aliás, jamais se colocou em foco qualquer conduta de Miguel.
Por outro lado, a emoção genuína de alguém que acompanhou de perto essa tragédia e que vem sendo vítima de restrições, xingamentos e ameaças não pode ser confundida com “show” nem tachada de produto de um “ensaio”.
Finalmente, não tem cabimento falar em “morosidade” da Justiça quando, em pouco mais de um ano, apesar das restrições impostas pela pandemia, foram ouvidas 14 testemunhas e o processo encontra-se na fase final – o que apenas demonstra o empenho de todos os envolvidos para acelerar o andamento da ação."
Após interrogatório de Sarí Corte Real, caso segue para alegações finais
Acusada de abandono de incapaz com resultado em morte, a ex-primeira-dama de Tamandaré, Sarí Corte Real, prestou depoimento nesta quarta-feira (15) sobre a morte do menino Miguel, ocorrida em junho de 2020 no Recife. O garoto de 5 anos caiu de um prédio de luxo da cidade minutos após ser deixado sozinho em um elevador pela pátria da mãe.
Segundo o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), ela e duas testemunhas de defesa foram ouvidas nesta quarta-feira na 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital, localizada no Centro Integrado da Criança e do Adolescente, no bairro da Boa Vista, na área central do Recife.
A audiência começou às 9h30 e foi conduzida pelo titular da unidade judiciária, juiz José Renato Bizerra. Foi ele também que conduziu a primeira parte do julgamento, que aconteceu no dia 3 de dezembro de 2020 e terminou sem a ouvida de Sarí.
A audiência acabou às 11h40, na 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital, localizada no Centro Integrado da Criança e do Adolescente (Cica), na Rua João Fernandes Vieira, na Boa Vista, área central do Recife.
No total, desde o início da fase de instrução, foram ouvidas oito testemunhas arroladas pelo Ministério Público de Pernambuco, de forma presencial, no dia 3 de dezembro de 2020, e também seis testemunhas de defesa, sendo três de forma presencial, no dia 3 de dezembro de 2020, outra por carta precatória na comarca de Tracunhaém, no dia 2 de março deste ano, e as duas últimas nesta quarta-feira (15).
Após a instrução, encerrada nesta quarta, o Ministério Público de Pernambuco, o assistente de acusação e a defesa apresentarão as alegações finais, e, em seguida, será proferida a sentença do juiz.
O caso
O MPPE denunciou a acusada Sarí Corte Real por abandono de incapaz com resultado em morte, com as agravantes de cometimento de crime contra criança e em ocasião de calamidade pública.
Miguel caiu do 9º andar do edifício Píer Maurício de Nassau, no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife, no dia 2 de junho. A queda aconteceu após a mãe dele deixá-lo com Sarí Corte Real para passear com Mel, a cadela da família que a empregava.
No dia da morte de Miguel, Sarí foi presa em flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Ela pagou uma fiança de R$ 20 mil para responder ao processo em liberdade.
Em 1º de julho de 2020, ela foi indiciada pela polícia por abandono de incapaz que resultou em morte. Esse tipo de delito é considerado "preterdoloso", quando alguém comete um crime diferente do que planejava cometer.