ENTREVISTA

Silvio Meira: Os desafios para sermos figitais

O caminho para uma transformação figital de Estado é uma composição de competências e habilidades de quem toma decisão e executa política pública (gestores), das pessoas (sociedade), das universidades e do mercado

ROSÁRIO DE POMPÉIA
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ROSÁRIO DE POMPÉIA
Publicado em 13/11/2022 às 6:00 | Atualizado em 13/11/2022 às 7:48
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CIENTISTA Silvio Meira explica que, no metaverso, um aluno que estiver em casa será visto e ouvido pela sala de aula como se estivesse ali - FOTO: DIVULGAÇÃO
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Em tempos de construções de novos planos de governos e escolhas de nomes para cargos no Estado, Silvio Meira - cientista chefe da TDS Company, professor extraordinário da Cesar School e presidente do Conselho do Porto Digital - publica o ebook "Estratégia para um Brasil Figital", no qual aponta direções, desafios e dimensões para implementação de políticas públicas que podem tornar Estados mais competitivos e sustentáveis a curto, médio e longo prazo. No ebook, Meira traz reflexões sobre as implicações causadas pela atual economia do conhecimento que impactam a efetividade dos negócios de Estado. Além disso, destaca a formação do capital humano como um dos principais horizontes para efetivação do processo de transformação figital do Estado. Meira também cita a importância de novos redesenhos que busquem tornar o cidadão mais próximo do Estado e ressalta a necessidade de um novo ordenamento jurídico capaz de lidar com um mundo mais atualizado. Você pode conferir a íntegra do documento aqui.

PERGUNTA - Seu documento sobre a construção de uma "Estratégia para um Brasil Figital" chega à sociedade no momento em que governos estão formando seus ministérios, secretariados e revisando planos apresentados nas eleições. O que significa um Brasil Figital? Já vivemos num Brasil Figital ou queremos ser um Brasil Figital? 

SILVIO MEIRA - O Brasil, enquanto Estado, não é figital, apesar de já estarmos vivendo numa realidade figital, que começou há mais de 50 anos. O espaço das nossas performances existe em três dimensões: física (as estradas, por exemplo), digital (plataformas, competências e habilidades) e social (conexões, interações e relacionamentos).

Nesse ambiente, se recriam novos conhecimentos e novas transações, inclusive comerciais. Mas só um pequeno subconjunto de pessoas e, muito menor, de instituições e de agentes públicos entenderam esse espaço figital. Por exemplo, faz pouco tempo que os agentes públicos entraram nas redes sociais, com 15 anos de atraso e, quando resolveram participar, as redes sociais já não tinham o mesmo valor e papel de  quando começaram. 

Estamos falando de uma transformação figital que combine inovação figital com transformação estratégica. É redesenhar a arquitetura e processos de tomada de decisão e sua execução, de acompanhamento de políticas públicas nesse novo contexto de mundo. Essa falta de entendimento faz com que agentes de Estado ajam dez a quinze anos atrás do tempo dos acontecimentos correntes.  

Ao escrever esse ebook quis chamar atenção da responsabilidade dos agentes de Estado, principalmente, com a transformação do capital humano porque é isso, que no final das contas, pode mudar a qualidade de vida da população. Em qualquer lugar do mundo, nos últimos cinquenta anos, foi assim que funcionou. 

PERGUNTA - Se estratégias para um Brasil Figital precisam, em grande parte, de competências para serem implementadas, a escolha de nomes para secretarias ou ministérios deveriam ter pré-requisito escolher pessoas que tenham já uma visão desse novo Brasil que queremos chegar? Seria o caso de termos uma secretaria de "transformação figital"?

SILVIO MEIRA - O caminho para uma transformação figital de Estado é uma composição de competências e habilidades de quem toma decisão e executa política pública (gestores), das pessoas (sociedade), das universidades e do mercado.

As pessoas precisam, cada vez mais, entender que estão inseridas num espaço figital onde as oportunidades - de renda, entretenimento e negócios-  já exigem novas habilidades e competências. Isso é urgente. Já o Estado precisa entender isso e criar condições para que as pessoas adquiram novas competências.

Um dos caminhos que os gestores podem trilhar é o de pequenos experimentos, inovações periféricas, em políticas figitais de saúde, educação, segurança, trabalho, fiscais… orientadas por uma estratégia maior e alinhada por todos. Transformação figital leva tempo. Por isso, não deve ser uma transformação de governo, ou do executivo, mas de Estado. 

Entre os princípios que você cita para competir e performar no espaço figital, um deles é a simplificação do Estado. A desburocratização é o começo desse processo?  

Precisamos trazer o cidadão para "dentro do Estado", começando por simplificar tudo o que o Estado faz. Simplificar é ser capaz de entender e atender bem o cidadão em todas as suas facetas sociais (trabalhador, aposentado, desempregado, paciente, empreendedor, professor, mãe, aluno).

Isso não depende necessariamente de tecnologia mas, principalmente, de redesenhos estruturais das funções de Estado e processos que acontecem lá dentro.  Um exemplo, de Portugal, é o Simplex, um conjunto de medidas para simplificar a relação do Estado com os cidadãos.

Se um órgão de Estado, para atender uma pessoa, demanda um documento fornecido por outro, é responsabilidade de quem atende desenrolar a documentação, ao invés de passar a demanda para o cidadão. Parece um detalhe, mas eliminou um grande número de documentos que eram demandados, sem serem necessários aos processos, porque o problema de conseguir o documento passou a ser do Estado e não mais do cidadão. 

Existe um senso comum que quando se fala sobre inovação e transformação digital estamos falando de aspectos tecnológicos. Não é à toa que esse debate fica, muitas vezes, restrito a Ministérios ou Secretarias de Ciência e Tecnologia. Mas, o seu documento amplia esse olhar e coloca, por exemplo, a educação como fundamental para construção de um Brasil Figital. Por quê? 

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, segundo Drucker,  começamos a entrar na sociedade e economia da informação e do conhecimento. Saímos de uma era onde a força física dominava as condições humanas, econômicas e sociais para outra, onde  informação e  conhecimento passaram a ser a chave da performance.

O entendimento de como o mundo funciona mudou e, com isso, a educação deveria ter mudado dramaticamente. Nós demoramos muito para entender isso. Agora, estamos no centro de um processo de mudança onde há três forças agindo simultaneamente: a informatização (que media quase tudo o que se faz, tratando informação), a automação (que robotiza processos e trabalhos), e a combinação de descentralização e distribuição (que afetam o lugar onde se trabalha e a forma de tomar decisões).

Mercados foram transformados em redes, e parte do trabalho que está sendo feito aqui pode ser levado para outro lugar e o trabalho feito lá também pode vir para cá, se formos competitivos para tal. 

Podemos gerar trabalho e emprego aqui sem ter as empresas aqui, porque parte significativa do trabalho é manipulação de informação e conhecimento, em rede, por pessoas articuladas de forma descentralizada e distribuída. Mas, para tudo isso acontecer é preciso entender os fundamentos desse mundo figital. Hoje, o déficit global de programadores é na casa de muitos milhões de pessoas.

Uma ação de Estado poderia formar programadores, por exemplo, que têm salário muitas vezes maior que o salário mínimo, e isso no fim do ensino médio. Em Pernambuco, temos um Sistema de dezenas de escolas de Ensino Médio Técnico. Como usar tal rede para escalar essa educação?

O Estado tem que trabalhar políticas públicas que habilitem os cidadãos em competências e habilidades que pagam boletos, ao mesmo tempo que forma o cidadão que entende e demanda seus direitos num Estado democrático de direito . 

Se não fizermos  isso e não prepararmos programadores, biomédicos, analistas de imagem, de DNA, para esse novo mundo, teremos muito mais problemas econômicos e sociais. Não tem saída: ou Estado prepara as pessoas, em escala, para os trabalhos do futuro ou elas não terão emprego, nem trabalho, porque seus trabalhos não irão existir mais.

Estamos vivendo um momento igual ou mais grave do que em meados de 1900-1920, quando houve a transição da tração animal para o motor a explosão. Lá, e hoje, a transformação do trabalhador é inadiável, porque a do trabalho começou há muito tempo.. 

PERGUNTA - Além da educação, que não acompanhou esse mundo figital, temos as leis. No seu documento, você cita que ainda, no que tange ao digital, se está preso a um conjunto  de políticas públicas de informática que têm origem em 1972? 

SILVIO MEIRA - O mercado de tecnologia avançou em direção a essa nova economia muito mais rapidamente do que o Estado e Universidades. As empresas começaram a inovar criando, por exemplo, plataformas digitais e o Estado ficou tão atrasado que nem sabe como cobrar imposto disso.

Esse é um grande problema para o Estado porque ele precisa (re) entender o mundo para elaborar as novas regras e descobrir como executar suas funções dentro desse novo universo. Para isso, a mudança precisa acontecer não só no Executivo, mas também no Legislativo e no Judiciário.

É necessário um novo ordenamento jurídico assim como novas políticas e estratégias para indústria, comércio, serviços e novas formas de regulação, atualizadas para novas performances na economia. 

PERGUNTA - Você elenca 25 aspirações. Podemos afirmar que você apontou 25 compromissos que poderíamos, enquanto sociedade, cobrar que governos nacional e estaduais cheguem em 2030 se quisermos um Brasil Figital. É possível começar já? 

SILVIO MEIRA - Os mandatos que se iniciam em 2023 têm apenas o ano que vem para começar a se transformar.  Se nada acontecer no próximo ano, os gestores serão dominados - como sempre- pela máquina do Estado e as suas estruturas de poder, além das pressões sociais. Se a lógica do planejamento seguir o modelo clássico de tentar resolver tudo ou atacar apenas o que é mais importante não irá dar certo, como nunca deu.

Para fazer diferente e chegarmos num Brasil Figital, é preciso começar a inovar pelas bordas, atacando pequenas partes dos grandes problemas, para paulatinamente mudar a máquina como um todo. Não se pode querer mudar tudo de uma vez, e começando pelo centro da máquina. Um dos exemplos do que e como fazer é o Porto Digital. Ele foi uma espécie de vírus na economia de Pernambuco. Começamos bem pequenos, periféricos.

Em 2000, éramos cinco empresas com 50 pessoas no centro da cidade e, hoje, 22 anos depois, somos mais de 350 empresas, mais de 15 mil pessoas, movimentando R$ 3,7 bilhões em 2021, o terceiro maior PIB da cidade do Recife, com uma das empresas tendo sido vendida por R$1,142 bilhões nesta semana.

Precisamos fazer experimentos como o Porto Digital  em muitas outras cadeias de conhecimento e valor em muitos lugares do Estado de Pernambuco e no Brasil, ao mesmo tempo e em escala, porque muitos deles irão dar errado - e aprenderemos com eles- e muitos outros podem dar certo -e aprenderemos com eles e seus resultados.  É como se fosse necessário criar uma secretaria de experimentos figitais, com "legos" interligados a  outras secretarias, às universidades, a agentes do setor privado e do terceiro setor, tudo orquestrado por uma estratégia maior de transformar o capital humano do Brasil -e de Pernambuco- em busca de uma melhor qualidade de vida para as pessoas e para a sociedade.

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