Projeto da Cidade da Copa não saiu do papel. Ficou só a Arena Pernambuco com prejuízo anual de R$ 5,6 milhões

Valor gasto por ano pelo governo de Pernambuco para manter a Arena poderia custear mais de metade da reforma do Hospital da Restauração no Recife, estimada em R$ 9,1 milhóes. População e empresários ficaram frustrados com o "legado" da Copa de 2014
Adriana Guarda
Publicado em 10/12/2022 às 0:00
No lugar onde deveria funcionar a Cidade da Copa, apenas a Arena Pernambuco Foto: BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM


A Copa do Mundo do Catar 2022 faz refletir sobre outro mundial: o de 2014. Não sobre o desempenho da Seleção Canarinho, que não chegou à fase final em nenhum dos dois mundiais de futebol, mas sobre o legado da Copa sediada no Brasil há 8 anos. Na época, Recife foi escolhida como uma das 12 cidades-sede da Copa das Confederações (2013) e da Copa do Mundo (2014), mas o projeto extrapolou a capital pernambucana e se estendeu para a Região Metropolitana. A grande beneficiária do Mundial no Estado seria a cidade de São Lourenço da Mata.

O muncípio, com mais de 100 mil habitantes na época, foi escolhido para abrigar a chamada Cidade da Copa. O projeto, com investimento superior a R$ 500 milhões, previa a construção do estádio Arena Pernambuco (como âncora), além de uma arena indoor, parques, centro de convenções, shopping center, campus universitário, torres de escritórios e 4,5 mil unidades habitacionais. Toda a Cidade da Copa orbitaria em torno do monumental estádio, com capacidade para 46 mil pessoas.

Divulgação - Cidade da Copa previa conjuntos habitacionais, shopping, universidade, parque e empresariais. Ficou só no estádio da Arena Pernambuco e muito mato ao redor

Anunciada como a primeira cidade inteligente da América Latina, a Cidade da Copa de São Lourenço da Mata seria inspirada na na cidade de Minato Mirai, distrito de Yokohama, conhecida como a primeira cidade inteligente do Japão. A previsão era que o projeto dobrasse a população do município, agregando mais 100 mil habitantes.

Passados 8 anos, a Cidade da Copa não vingou. O projeto megalomaníaco não saiu da maquete. O que se vê no local é um estádio gigante cercado de mato por todos os lados. Nada de habitacionais, shopiing, universidades ou qualquer outro empreendimento. Outros projetos imobiliários e empresariais implantados em função da promessa da Cidade da Copa estão incompletos e precisaram se reinventar para atrair clientes e se manter no mercado, como os restaurantes.

Organizadora e escritora do livro "Recife: Os impactos da Copa do Mundo de 2014", Ana Maria Ramalho, destaca que o governo chegou a prospectar outros municípios para sediar a Cidade da Copa, mas se decidu por São Lourenço por entender que os empreendimentos sempre iam para os litorais Norte e Sul e que esta seria uma oportunidade de desenvolver a Região Metropolitana Oeste. Além disso, o governo de Pernambuco dispunha de um terreno de 247 hectares na cidade para receber o projeto, sem precisar ter custo com desapropriações.

Inicialmente, o projeto da Cidade da Copa foi elaborado pelo Núcleo Técnico de Operações Urbanas/NTOU, ligado ao governo estadual. "Com o anúncio que o Governo Federal entraria com cerca de R$ 500 milhões para investimentos na Cidade da Copa, houve um súbito interesse da iniciativa privada em participar desse projeto, deixando toda a equipe técnica do NTOU afastada do processo e reformulando a ideia. A partir de então, o projeto da Cidade da Copa ficou sob a responsabilidade do grupo privado Consórcio Arena Pernambuco, constituído pela Odebrecht Investimentos em Infraestrutura Ltda. e Odebrecht Serviços de Engenharia e Construção S.A", conta Ana Maria.

Os empreendedores prometiam que as pessoas teriam um “lugar para morar, trabalhar, aprender e se divertir”. Não foi o que aconteceu. A construção da Cidade da Copa aconteceria, gradativamente, até 2025, mas o único equipamento pronto é a Arena Pernambuco.  Inaugurada em maio de 2013, ela custou R$ 479 milhões ao Estado. O valor do estádio foi contestado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) e o contrato foi alvo de investigação da Polícia Federal.

A gestão da Arena começou como uma parceria público-privada (PPP) com a Odebrecht, mas a empresa pulou fora do contrato porque a receita esperada nunca foi alcançada. Sem disposição para perder dinheiro, a Odebrecht (uma das maiores operadoras da operação Lava Jato) rompeu o contrato com o governo de Pernambuco em junho de 2016. Além de bancar o déficit do estádio, que não de paga, o governo ainda teve que arcar com o pagamento de uma indenização de R$ 246,8 milhões à Odebrecht. 

A Arena continua gerando déficit e o governo tenta conceder o equipamento a outro empreendedor, mas não há interessados. Segundo o Portal da Transparência, o estádio arrecada cerca de R$ 220 mil por mês, enquanto o custo de manutenção é de R$ 690 mil por mês. No ano, o déficit chega a R$ 5,6 milhões, valor suficiente para custear mais da metade da reforma do Hospital da Restauração, por exemplo, estimada em R$ 9,1 milhhões. 

EXPECTATIVAS FRUSTRADAS 

Quando soube que São Lourenço da Mata ia sediar a Cidade da Copa, o designer gráfico Carlos Eduardo Santos, 46 anos, decidiu comprar um imóvel na cidade. Até então era um morador da Zona Sul do Recife, sem qualquer relação com o município da RMR. "Inicialmente eu comprei para investir. Não pensava em morar. Com a Cidade da Copa, a expectativa era que imóvel valorizasse, mas não foi o que aconteceu", lamenta.

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM - Carlos Eduardo complou apartamento no Reserva São Lourenço para investir, imaginando a valorização por conta da Cidade da Copa que não existiu

Cadu imaginou que o imóvel no Condomínio Reserva São Lourenço, projeto de bairro planejado erguido pela Pernambuco Construtora, alcançasse uma valorização média de 30%. Inaugurado em 2013, o empreendimento não entregou todos os equipamentos que prometeu. Os 14 prédios de oito andares, todos com nomes de árvores, não viram chegar a praça, o posto de saúde e a escola prometida. Os mais de 2 mil moradores também enfrentam dificuldade de locomoção direta para Recife. Para sair do bairro é preciso gastar R$ 4,35 em uma passagem de ônibus para o TIP para de lá seguir destino.

"Como nem a Cidade da Copa (no entorno da Arena) nem o bairro planejado avançou aqui, imagino que terei prejuízo se vender me apartamento hoje, porque fiz uma reforma", afirma Cadu. 

O empreendedor Genivaldo Antunes Galindo, conhecido como Gena, conta que tentou aproveitar as oportunidades trazidas pela Cidade da Copa desde o início. "Em 2012, eu trouxe meu currículo para a obra do Reserva São Lorenço para disputar uma vaga de ajudante. Enquanto não conseguia, coloquei um carro nas proximidades do empreendimento pra vender lanche. Deu tão certo que passei três anos me dividindo entre o expediente na obra e o negócio. Depois fui demitido e fiquei só com o comércio", conta. 

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM - Na falta de supermercado no bairro planejado Reserva São Lourenço, Seu Gena quebra o galho dos moradores com sua Parati

Gena começou o negócio com um Fiat 1997 e hoje tem uma Parati 2009. Todos os dias, ele acorda antes do nascer do céu, às 3h, junto com a esposa Simone Alves Galindo, para peparar as comidas que vende na entrada do Reserva São Lourenço. A Parati se transforma em uma micromercearia para suprir a necessidade dos moradores do condomínio que nunca viram chegar o planejado hipermercado. O terreno está lá, um enorme pedaço de chão vazio ao lado dos prédios.

O supermercado que funcionava na galeria batizada de Reserva Shopping, a poucos metros do prédio, fechou. Segundo os moradores, não suportou o preço do aluguel. O espaço tem várias lojas fechadas, mas funciona academia, pastelaria, lanchonete, delicatessen/padaria e outros negócios. 

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM - Terreno ao lado do condomínio Reserva São Lourenço deveria abrigar um hipermercado, que nunca se instalou

Na Parati de Gena tem de produto de higiene e limpeza a cereais, passando por cigarro, balas, bebidas e refrigerantes, além de pratos para o café da manhã e almoço, preparados por ele e a esposa. Tem guisado de boi, peito de frango, charque, bife, fígado, cuscuz e macaxeira. 

"Minha clientela são os moradores do prédio. Todos aqui me conhecem. Se falta alguma coisa em casa ou não querem fazer café ou almoço param aqui. Se a Cidade da Copa tivese viingado a situação seria diferente. As oportunidades de emprego e o movimento de pessoas no shopping, na universidade e nos empresarias ia aumentar a ocupação do condomínio e gerar movimento", afirma Gena. O desejo do microempreendedor é ter um trailer para evitar o trabalho diário de montar e desmontar a Parati. 

EMPRESÁRIOS SE REINVENTAM

No setor de restaurantes, os empreendedores também apostaram no legado da Cidade da Copa. Para alguns deles, nem a Arena Pernambuco se reverteu em benefício permanente. Os três filhos de Seu Antônio Firmino, empresário (falecido) do setor há mais de 30 anos, foram idenizados das proximidades da Arena e reabriram seus negócios às margens da BR-408. 

Filha de Seu Antônio, Dona Maria do Céu Firmino comandava, desde 1992, o Bar do Bode. O negócio funciona do lado do posto de gasolina, por trás da Arena Pernambuco. Em 2012 foi indenizada e, no ano seguinte, já reinaugurava o restaurante como Bodega Sertaneja, em um terreno de seu Antônio na BR-408. Começaram apenas com dez mesas. 

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM - Com ou sem Cidade da Copa, Maria do Céu e Wanessa (mãe e filha) fazem a diferença no setor de restaurantes em São Lourenço da Mata

Em 2020, Dona Maria ganhou o reforço da filha Wanessa Verena da Silva Monteiro, de 34 anos, no negócio. Engenheira elétrica de uma multinacional, ela deixou a empresa para se juntar à mãe. O restaurante foi crescendo, aperfeiçoando a governança e se diversificando. Mas tudo graças ao esforço dos donos, que resolveram deixar de lamentar o legado de uma Cidade da Copa que nunca se concretizou e atrair a clientela a maneira deles. 

"Nós fizemos nosso planejamento em cima da Cidade da Copa. Se os investimentos tivessem se concretizado seria muito melhor, porque teria o movimento dos empresariais e de outros empresndimentos anunciados. Poderíamos até ter o funcionamento de um terceiro turno, porque hoje funcionamos até às 17h. Mas conseguimos fidelizar de qualquer forma. Hoje temos clientes de Recife e Olinda que vêm a São Lourenço só para comer aqui. Também tempos clientes do Polo Industrial do Curado", detalha Wanessa. 

Hoje com 75 mesas e capacidade para receber 300 clientes, a Bodega Sertaneja se reinventa. Em fevereiro de 2023, o restaurante planeja inaugurar uma pizzaria com fermentação natural. A pizzaria terá delivery e vai atender até 22h. Este ano Wanessa se formou gastrônoma pelo Senac e não vai parar por aí. Grávida da primeira filha, Cecília, ela pensa em fazer pós-graduação assim que puder. O marido Valmir Barbosa é seu braço direito no restaurante. 

A Bodega Sertaneja também apostou na instalação de placas solares e tem planos de avançar, junto com a expansão do negócio. Em um primeiro momento foram instaladas 73 placas e o plano é investir em outras 80 ou 90 para atender a demanda. Wanessa diz que a economia de energia já chega a 70%. 

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM - Hélida Costa sempre foi cética com a concretização da Cidade da Copa. Hoje tem a missão de transformar o Bar do João em Comedoria Arretada

COMEDORIA ARRETADA

Casada com um dos filhos de Seu Antônio Firmino, Hélida Torres, tornou-se sócia do Bar do João, com a missão de repaginar o negócio. "Eu já era cética em relação a essa Cidade da Copa. Meu marido ficava entusiamado, mas eu achava que era conversa de político. O que ficou foi aquele elefante branco (a Arena) lá se acabando, que pra gente não faz diferença nenhuma. As pessoas que vão para o estádio costumam passar direto, porque lá já tem onde comer. A época que a gente ganhou dnheiro foi na Copa de 2014, mas com estacionamento. Como lá não tinha capacidade para todos os carros, nós disponibilizávamos 100 vagas e cobrávamos R$ 50, porque na Arena era R$ 70", conta. 

Mesmo sem Cidade da Copa ou Arena, Hélida adianta que o restaurante está se modernizando. Em breve, o Bar do João vai se transformar em Comedoria Arretada e oferecer cardápio e decoração nordestina. Outro espaço da empresa que seria uma lanchonete será ocupado por um negócio de frango frito. E assim, os empresários de São Lourenço da Mata seguem criando suas próprias oportunidades sem esperar por um projeto esquecido e enterrado pelo Poder Público. 

 

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