"Não podemos deixar criança passando fome", diz José Graziano, convocando toda a população brasileira para mutirão

Corrdenador do Programa Fome Zero no primeiro governo Lula, José Graziano diz que combater a fome em 2003 foi mais difícil do que agora e chama a população para participar de um mutirão
Adriana Guarda
Publicado em 20/01/2023 às 18:57
Seminário: Enfrentando a Tripla Crise Planetária por meio do fortalecimento da Governança Global. NA FOTO: JOSÉ GRAZIANO, DIRETOR GERAL DO INSTITUTO FOME ZERO Foto: BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM


José Graziano esteve no Recife esta semana para participar do evento "Enfrentando a Tripla Crise Planetária por meio do fortalecimento da governança global", no Radisson Hotel, em Boa Viagem. Entre uma agenda e outra, ele concedeu entrevista ao JC. Na conversa, falou sobre a volta do Brasil ao Mapa da Fome, da necessidade colocar em prática um plano emergencial de combate, da dificuldade de acesso da população pobre à alimentação saudável e da carga tributária dos alimentos. Admirador do pernambucano Josué de Castro, autor da "Geografia da Fome", o ex-Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) revela que tem o sonho de publicar os discursos de Josué de Castro na FAO. Graziano defende que a fome não pode esperar e que é necessário distribuir renda com a população nesse momento emergencial

Jornal do Commercio - Por que o Brasil voltou ao Mapa da Fome da ONU, em 2021, se havia saído dele desde 2014? 

José Graziano - O Brasil desde 2014 sofreu uma série de descontinuidades econômicas, sofreu uma série de golpes políticos e de governos que não deram atenção ao social. Então, uma série de programas para acudirr o mais pobre, como foi o caso do Bolsa Família, por exemplo, foram sendo descontinuados, foram reduzindo o valor. E o principal programa que levou o Brasil a sair do Mapa da Fome, que foi a elevação do valor real do salário mínimo, a partir do final do governo Dilma, deixou de crescer acima da inflação e ficou abaixo. Quando isso acontece, a inflação vai corroendo o seu salário, que vai baixando mês a mês. Então as famílias foram se endividando, primeiro no cartão de crédito e depois em empréstimos bancários. Mesmo que se recupere  agora o valor do salário, as perdas permanecem e as pessoas continuam passando fome ou comendo mal. O Brasil tem hoje essa dupla dimensão: gente que não come e gente que come mal. 

JC - O senhor comentou sobre gente que come mal e a ONU acabou de divulgar um relatório apontando que a América Latina tem a comida saudável mais cara do mundo. Como se justifica isso se a região têm países que são grandes produtores de alimentos, a exemplo do Brasil?

Graziano - Isso não se justifica, porque o Brasil é o grande exportador de produtos agrícolas do mundo, depois dos Estados Unidos. Isso é falta de políticas públicas. Espero que agora, com o novo governo federal os governos estaduais, seja dada a devida atenção ao problema. É preciso suplementar a renda dos mais pobres. Essa não é a solução, porque o ideal seria ter empregos melhores e salários melhores. Mas não dá para esperar, tem que dar dinheiro. 

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM - Seminário: Enfrentando a Tripla Crise Planetária por meio do fortalecimento da Governança Global. NA FOTO: JOS� GRAZIANO, DIRETOR GERAL DO INSTITUTO FOME ZERO

JC - Na periferia aqui do Grande Recife é muito comum a família não ter dinheiro pra comprar um leite, por exemplo, e comprar um saco de salgadinho para os fillhos, que custa menos de R$ 1. É a chamada fome gorda, que os especialistas comentam. Uma legião de pessoas comendo ultraprocessados e engordando, mas permanecem com fome... 

Graziano - Exatamente! Isso gera um grande problema de saúde pública, que são o sobrepeso e a obesidade. Nós temos 40% da população brasileira com sobrepeso e 25% com obesidade. Quer dizer que  um, de cada quatro brasileiros, é obeso. Para que a população coma saudável é preciso baratear esses produtos. É um problema a ser enfrentado na reforma tributária. O que faz o saquinho de salgadinho ser mais barato do que uma fruta, por exemplo, é o sistema tributário que, infelizmente, privilegia os produtos ultraprocessados. O que deveria se fazer era aumentar os impostos sobre os ultraprocessados e, se possível, subsidiar produtos saudáveis. Isso contribuiria para promover uma mudança de hábito de consumo.

JC - O que mudou na fome de duas décadas atrás e de agora? 

Graziano - A fome de 20 anos atrás, particularmente no Nordeste, concentrava-se nos pequenos e médios municípios, com população de 25, 50, 75  e até 100 mil habitantes. Depois, houve uma urbanização, ou  melhor dizendo, uma metropolização da fome rural. As pessoas vieram parar no Recife, em Fortaleza, em  São Paulo e no Rio de Janeiro. Hoje, é nessa Periferia Urbana, nesse conjunto de favelas que se implantou, nos últimos 20 30 anos, que se concentra a fome no Brasil.

JC - Quanto tempo o Brasil levou para sair do Mapa da Fome em 2014 e qual a previsão de resolver o problema desta vez?

Graziano  - Olha, em 2014, nós levamos 10 anos. O Fome Zero começou em 2003, do nada. O Brasil não tinha uma política voltada ao problema. Foi o primeiro programa que atacou a fome de maneira global, não apenas com medidas paliativas e assistencialistas. O programa tinha mais de 40 ações integradas. Agora não estamos começando do zero. Já exite um programa como o Bolsa Família. O Cadstro Único nos permite saber quem são e encontrar as pessoas. A população tem acesso a conta bancária e a celular. Tudo isso facilita. Então vai ser mais fácil e mais rápido. Eu acredito que o governo Lula, levando a sério a promessa de garantir três refeições diárias à população, vai passar a gestão inteira brigando até conseguir. Acredito que vai levar de quatro a cinco anos para conseguir. 

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM - Seminário: Enfrentando a Tripla Crise Planetária por meio do fortalecimento da Governança Global. NA FOTO: JOSÉ GRAZIANO, DIRETOR GERAL DO INSTITUTO FOME ZERO

JC - O senhor sempre comenta que a fome não é um problema só do governo, mas da sociedade como todo. De que forma, na prática, as empresas, nós da sociedade civil e os governos estadual e municipal podem contribuir? 

Graziano - Verdade. Eu insisto nisso! É preciso entender que a fome é primeiro uma agenda municipal. As pessoas moram na cidade e é lá que elas moram, comem e dormem. Então, os prefeitos têm uma grande responsabilidade nisso. O governo municipal tem os instrumentos e as estruturas para lidar com o problema. Com transferência de recursos estadual e federal, os prefeitos podem fazer muita coisa. Eu tenho dito que é preciso criar um mutirão contra a fome, reunindo todo mundo que queira combatê-la com doaçoes, com distribuição. Tem tanta associoação de moradores, de bairros e clubes esportivos, que poderia contribuir. Tanta gente que podia dedicar a parte das suas atividades a esse momento de emergência, porque não podemos deixar criança passando fome. Porque uma criança que passa fome agora vai carregar isso para o resto da vida porque afeta o seu desenvolvimento motor e intelectual.  

 

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