Meio quilo de arroz era tudo o que Lindiana tinha na sexta-feira (3) para colocar no fogo e alimentar a família. Pensou em pedir emprestado o celular do vizinho e ligar para a mãe, quando ela apareceu. Passava das 10h30, mas ninguém tinha tomado café na pequena casa na Colônia de Pescadores, no Pina.
Dona Geozani, mãe de Lindiana, deu R$ 10 para ela comprar um pouco de salsicha e conseguiu uns pães para as crianças comerem. Mãe de três filhas vivendo com ela, Lindiana Silva dos Santos, de 37 anos, já nem lembra a última vez que a família fez as três refeições.
Desempregados há anos, a dona-de-casa e o marido Neudes, 31, vivem dos R$ 600 do Bolsa Família e de uns bicos que ele faz. Sem dinheiro, feijão e carne foram ficando cada vez mais escassos no prato da família.
A situação do casal retrata o retrocesso vivido pelo Brasil em um curto período de duas décadas. Em 2003, o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva lançava o Fome Zero, primeira política social sistematizada para combater o problema.
O programa, que originou o Bolsa Família em 2004, contribuiu para tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU em 2014, mas o País retrocedeu e, em 2021, voltou à mesma condição. Assumindo a Presidência da República pela terceira vez este ano, Lula elegeu o combate à fome como seu principal compromisso de governo, assim como fez há 20 anos.
"Estamos vivendo uma situação muito difícil. Moramos em uma casa muito pequena. Na verdade é um quarto com três vãos, mas o nosso dinheiro vai quase todo para o aluguel dela. Dos R$ 600 do Bolsa Família, pago R$ 450 do aluguel da casa e ficamos com quase nada. Meu marido faz todas as 'oias' (bicos) que aparecem para trazer algum dinheiro", conta Lindiana.
A dona-de-casa tem três filhas vivendo com ela: Ingrid, de 3 anos; Elísia, de 10 anos; e Paula Andréia de 13 anos. Além delas, sua filha mais velha de 17 anos mora próximo, teve bebê e também enfrenta dificuldades para alimentar a família.
No início do primeiro governo Lula, em 2003, 9,5% da população brasileira vivia em condição de insegurança alimentar grave. Pela classificação da Rede Penssan, responsável por estudos sobre a fome, a insegurança grave é equivalente a passar fome.
A família declara fazer apenas uma refeição por dia ou fica sem comer um dia inteiro faz parte deste recorte. Essa taxa tinha caído para 4,2% em 2013, mas voltou a subir recentemente. Em 2021 e 2022, a Rede Penssan aponta que 15,5% da população está em insegurança alimentar grave. Isso representa cerca de 33 milhões de pessoas com fome no País que declaram não comer o suficiente no País.
Considerado o pai do Fome Zero, o coordenador do Programa no primeiro governo Lula, José Graziano, recorda que o projeto surgiu como uma iniciativa rural e voltada prioritariamente para o Nordeste, mas que depois se expandiu.
"Originalmente o Fome Zero foi desenhado para começar pelos pequenos municípios com até 25 mil habitantes. Depois, por pressão dos demais prefeitos, tivemos que passar para 50 mil e terminamos em 75 mil ghabitantes. O Cartão Alimentação do programa pagava R$ 50 por família. Era o valor da maior cédula da época e dava para comprar uma cesta básica. Era basicamente o que se espera hoje com os R$ 600", compara Graziano.
O programa tinha o propósito de combater a fome rural no Nordeste, estimulada em boa parte pelos ciclos das secas, mas depois ele foi se urbanizando e se nacionalizando. Graziano afirma que o programa se 'metropolitanizou', com a migração da população rural para as cidades em busca de melhores condições de vida para os filhos, sobretudo de olho na oferta de educação e saúde.
Graziano acredita que o Brasil conseguirá sair, novamente, do Mapa da Fome e destaca que, apesar do retrocesso, combater o problema agora é mais fácil do que na época do Fome Zero há 20 anos.
"Quando o Fome Zero começou, o Brasil não tinha uma política voltada ao problema. Foi o primeiro programa que atacou a fome de maneira global, não apenas com medidas paliativas e assistencialistas. O programa tinha mais de 40 ações integradas. Agora não estamos começando do zero. Já exite um programa como o Bolsa Família. O Cadstro Único nos permite saber quem são e encontrar as pessoas. A população tem acesso a conta bancária e a celular", aponta.
O agrônomo conta que o conhecimento sobre as populações vulneráveis era empírico, baseado nas Caravanas da Cidadania, realizadas por Lula na capanha eleitoral. "Quando lançamos o Fome Zero em Guaribas, no interior do Piauí, a cidade não tinha nada, nem escola. Precisamos contar com a ajuda de médicos, professores e lideranças locais para montar as primeiras listas de beneficiados", lembra.
Sem agências bancárias ou tecnologias digitais, o benefício do Fome Zero em Guaribas era pago, em dinheiro, em uma farmácia. A criação do Cadastro Único agilizou o processo, garantiu mais segurança e serviu como base de dados para vários outros programas, inclusive o Novo Bolsa Família, que o presidente Lula lançou na quinta-feira (2).