Tenho a impressão de estar saindo desta pandemia como "sobrevivente"

Será que nunca mais estarei tranqüilo naquele lugar do encontro público com o outro, lugar de possível contaminação, alterando nossa velha noção -já bastante danificada- de espaço público?
FLÁVIO BRAYNER
Publicado em 26/04/2022 às 0:00
Preparo para distribuição das primeiras doses da vacina pediátrica anticovid Foto: MYKE SENA/MS


O escritor franco-espanhol Jorge Semprun (1923-2011) fora membro da Resistência Francesa durante a Ocupação. Foi preso e deportado para o campo de Büchenwald, sobreviveu e voltou para Paris: tinha a sensação de que a morte não estava mais à sua "frente" e, sim, no "passado", naquele campo de extermínio. A partir de então, só teria vida! Até que soube do suicídio de Primo Levi (1987) que fora prisioneiro em Auschwitz. Naquele momento soubera que teria "duas mortes". O que significa ser um "sobrevivente"? O que devemos esperar da vida quando a morte "ficou para trás", quando ela escolheu, sem razão aparente, suas vítimas e não nos levou? Os sobreviventes do Holocausto não gostavam de falar do que viram e viveram, seja "porque os outros não acreditariam" (Levi), seja porque não havia palavras exatas para tanto horror (Arendt): O HORROR, O MAL RADICAL EXIGE NOVOS CONCEITOS!

Tenho a impressão de estar saindo desta pandemia como "sobrevivente", sem a carga destrutiva, claro, dos que voltaram dos campos nazistas; talvez eu até disponha de alguns conceitos que me permitam nomear um tipo de horror específico: se, com Auschwitz, estávamos diante do "horror moral", a pandemia aqui no Brasil teve a oportunidade, produzida pelo Governo Federal, de juntar num só tempo e lugar, dois "horrores", o MORAL (em que se tentou anular e até se fez gozação com o Direito à Vida) e o NATURAL (será?) em que um vírus levou mais de 6 milhões de pessoas do mundo. Como sairemos disso? Não acredito que possamos sair da escuridão atual com o mesmo espírito de Semprun ao voltar de Büchenwald, com um profundo desejo de vida, de paixão, de escrita... Numa sociedade hiperindividualista e patologicamente consumista, aposto que nossos investimentos "pulsionais" estarão canalizados, por um lado, para o prazer hedonista, narcísico, material, no interior de um sistema que não produz bens para atender necessidades: produz necessidades para vender bens. Por outro, será que as "máscaras" não sairão nunca mais de nossos rostos, e servirão apenas para expressar metaforicamente nossas "identidades" postiças, nossos egos de empréstimo que o consumo exige? Será que nunca mais poderei entrar num elevador sem temer a presença de uma pessoa estranha? Será que nunca mais freqüentarei ambientes sem "cuidados biossanitários"? Será que nunca mais estarei tranqüilo naquele lugar do encontro público com o outro, lugar de possível contaminação, alterando nossa velha noção -já bastante danificada- de espaço público? Será que nunca mais darei com regularidade semanal aquela aula presencial que tanto me enchia de felicidade e prazer? Será que ouvirei, noite dessas, aquela voz tenebrosa de "O Corvo" (Edgard A. Poe), "Nunca mais, nunca mais!"?

Flávio Brayner, professor UFPE

 

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