A sociedade, a advocacia, a OAB e o golpe de 1964

...Para que se continue a poder olhar para a frente na estrada do alvorecer democrático...
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Publicado em 02/03/2023 às 0:00
Golpe miliar de 1964 no Brasil: repressão a estudantes era comum Foto: REPRODUÇÃO/EVANDRO TEIXEIRA


Quando se situa em perspectiva adequada o golpe de 1964 e a postura inicial tida e havida por parte da sociedade, da advocacia e da própria OAB diante do que ocorreu, é preciso evitar prejulgamentos de condenação eterna e valorar como se deve a sincera autocrítica. Já dizia Alexander Pope: "Um homem nunca deve sentir vergonha de admitir que errou, o que vale dizer, em outros termos, que ele é hoje mais inteligente do que era ontem".

Registros históricos mostram que, em um primeiro momento, parte da população, e aí inclusa parte da advocacia e da própria institucionalidade da OAB, vocalizou alguma simpatia ao golpe. A chave, contudo, no que tange à Ordem, virou poucos meses mais tarde, quando se tornou ela, daí em diante, tribuna permanente de resistência às vozes do arbítrio, reconhecendo o erro do posicionamento inicial.

No instante em que eclodiu o golpe, segmento da sociedade via com um júbilo pode-se até dizer de alívio a ofensiva contra a pretensa "ameaça comunista" que enterraria a democracia. No STF, por exemplo, Ministros comungavam desse sentimento; no seio da própria OAB e da sociedade como um todo, também.

Falava-se de uma "grave ameaça que pairava sobre a Nação" e foi esse o olhar que majoritariamente contaminou a sessão do Conselho Pleno da OAB de 7 de abril de 1964, onde, por maioria, predominou a tese de que o País estava infiltrado de comunistas no governo e à beira de uma ruptura da legalidade e o golpe, portanto, se explicava e se justificava: uma excepcionalidade. Contudo, não tardou, e isso é o que é mais importante, para que a OAB repensasse sua atitude. Em sessão em junho de 1964, deliberou que os advogados com direitos políticos suspensos pelo regime não estavam impedidos de desempenhar a profissão. Em outubro do mesmo ano, protestou contra os atentados e perseguições aos advogados.

Em abril de 1967, eleito Samuel Vital Duarte para a Presidência do Conselho Federal, este em seu discurso de posse advertiu para que a atuação da Ordem transcendesse as prerrogativas da profissão. Em 1968, por exemplo, enviou peremptória mensagem ao Governo de então abordando os absurdos praticados contra os estudantes na "Passeata dos Cem Mil", realizada dias depois do assassinato de Edson Luís, estudante secundarista, na invasão ao restaurante "Calabouço", no Rio de Janeiro.

Passando então pela campanha por eleições diretas até a vitória de Tancredo no colégio eleitoral e culminando na nova constituinte, e por aí afora, a OAB seguiu inabalável no propósito de honrar o seu reencontro consigo mesma, redimindo-se aos olhos da história, culminando atualmente nos incisos I e II do artigo 44 da Lei Federal nº 8.906/1994. Ao encerrar, insistindo que errar é humano, que faz parte do processo de aprendizado e que só não erra quem nada faz, parece-me necessário exortar a "Carta de Curitiba", de 1972, quando presidia a OAB no plano federal o pernambucano José Cavalcanti Neves. Naquela ocasião, vocalizou a OAB a mais enfática defesa que poderia fazer dos princípios do Estado Democrático de Direito e das garantias fundamentais como ingredientes insubstituíveis para o

verdadeiro progresso socioeconômico. Jamais traiu esse compromisso.

No documento em questão, cuja leitura penso seja obrigatória, está a OAB que a OAB nasceu para ser: uma entidade que não se constrange em admitir o erro cometido e que é segura, madura, do que quer e do papel constitucional especialíssimo que possui, principal ponto de referência pela redemocratização.

Nesse instante em que mais uma vez temos diante de nós uma nuvem de dicotomia a turvar e embrutecer o pensamento nacional, segmentando os cidadãos entre extremos, a OAB que conheço é, sem dúvida, a OAB da "Carta de Curitiba".

É a OAB fênix, que se engrandeceu com o passar dos anos, vindo a ser a destinatária, conforme pesquisa de 2019 da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), de quase 70% da confiança da sociedade. O mais fica no campo de alcance do espelho retrovisor do bonde da história, para que se continue a poder olhar para a frente na estrada do alvorecer democrático.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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