Sempre existiram boatos em torno de assuntos médicos. Há mais de meio século, nas feiras públicas, já era possível acompanhar as notícias de sucesso do óleo de peixe boi do Amazonas, no tratamento de quase tudo. Era vendido para os males da coluna, coração, fígado, artrose, artrite, alergia, dores em geral. Ouvia-se a pregação sobre os milagres de pomadas, frutas exóticas, rezas e descarrego, reforçada pela figura dos "tapias" que surgiam do nada, atestando a eficiência dos produtos, aumentando a confiança para a compra.
A tática da notícia falsa espalhada boca a boca resiste até hoje, mas tem alcance limitado. As formas de divulgação mudaram, na política todo mundo sabe todo mundo viu, os grupos acordam e dormem abastecidos por notícias falsas, muitas pessoas absorvem e passam adiante, até o absurdo.
A medicina não escapa das fake news e, por razões óbvias, a repercussão é maior do que a observada com simples fofocas sobre celebridades em processo de divórcio. A mentira se infiltrou entre as evidências científicas levando vantagem, decorrente da disseminação em alta velocidade, sem o trâmite que é exigido para validar uma verdade científica.
Mesmo entre profissionais de saúde, a divulgação de conceitos falsos se tornou comum, com o agravante da credibilidade conferida pela profissão. As postagens acentuam riscos de vacinas, minimizando as doenças que combatem, minam a confiança e adesão aos programas de imunização. Como resultado, é perceptível a maior hesitação dos pais em levar as crianças para receber até o esquema vacinal que historicamente erradicou várias doenças. Instalou-se um maior questionamento em relação às vacinas clássicas contra tétano, influenza e poliomielite, um reflexo do crime que se passa nas redes sociais.
Também são divulgados tratamentos sem fundamento, com detalhes posológicos que visam conferir credibilidade, tal qual faziam os "tapias" de antigamente. Espalham falsos conceitos sobre a interpretação de exames laboratoriais, solicitados em massa e em desacordo com a indicação clínica, para justificar mirabolantes combinações de drogas, aminoácidos, vitaminas e hormônios, até o limite do que as cápsulas comportam, prometendo bem-estar e longevidade, atraindo uma legião de seguidores muito maior do que os da feira de rua no passado. Aproveitam para minar a confiança em tratamentos testados e de eficiência comprovada, insinuando efeitos colaterais, reduzindo a adesão de quem deles precisa. Divulgam conceitos não confirmados sobre alimentos e flora intestinal, indicando restrições que, sendo tantas, implicam em baixa adesão, responsabilizada então pelo insucesso.
Notícias falsas se espalham mais do que muitos vírus, produzem custos e mortes. Extrapolam o conceito de liberdade de expressão que, diga-se de passagem, não se aplica à emissão de pareceres técnicos sem referências bibliográficas e em total desacordo com a ciência. Medicina não é território livre nem campo para experiências não submetidas aos conselhos de ética. Claro que também jamais deveria ser lugar para prescrições políticas.
Os danos provocados à saúde das pessoas e à coletividade estão à vista.
Se é para desacreditar a ciência e exercitar a maldade, pelo menos evite-se usar o óleo de peixe boi do Amazonas que pode até funcionar como um bom placebo para um mal-estar passageiro, mas coloca um animal simpático e inocente em risco de extinção.
Sérgio Gondim, médico