Liberdade de expressão e discurso de ódio

O País se deixou capturar por uma divisão ideológica que o tornou irreconhecível e o fez regredir no plano civilizatório.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Publicado em 11/03/2023 às 0:00
Da tribuna, o deputado Nikolas Ferreira reforça o discurso do ódio, que não pode ser entendido como simples liberdade de expressão. Foto: Reprodução / Twitter


Brasília, Câmara dos Deputados, 8/3/2023, dia internacional da mulher. Eleito com 1,47 milhão de votos, o jovem Deputado por Minas Gerais, Nikolas Ferreira, sobe à tribuna e, acreditando possivelmente estar abrigado pela liberdade de expressão, coloca uma peruca loira, diz chamar-se "Deputada Nicole" e afirma que "mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres".

Ante a repercussão ao que significou o show de horrores que foi esse discurso improvisado, o Deputado tentou esvaziar a transfobia de sua fala com a curiosa tese de que a reverberação da mesma é "histeria" da esquerda. Assim como colegas já pediram a sua cassação por quebra de decoro, aumentou em velocidade 5G o seu número de seguidores nas redes sociais: 46 mil. Ora, a pergunta a ser feita para reflexão só pode ser: que País é esse?

Não à toa um dos temas mais suscetíveis a equívocos, até entre supostos "entendidos", a liberdade de expressão, inclusive dentro da sua caixa constitucional, enquanto direito fundamental, precisa ser conversada com a sociedade com honestidade.

Hoje, ao construir o conceito, muitos, até com domínio da técnica jurídica, reconhecem nesse direito, coligado com frequência ao de reunião, um descampado de bordas infinitas. Nas boas bancas universitárias, todavia, é lição cardinal a de que não existem liberdades ilimitadas na Constituição, mãe de todas as leis, a fim de oportunizar aos povos um mínimo ambiente de previsibilidade jurídica e paz.

Para Pierpaolo Bottini na Revista de Direito da USP de 19/07/2021, "quase todos os regentes, imperadores, presidentes e ditadores nacionais andaram às turras com a liberdade de expressão". Em seguida, adverte que, no papel, a liberdade de expressão é cercada do atributo da plenitude, mas isso não implica que possa ser exercitada arbitrariamente. Resume então o autor: "Abrigar a liberdade de expressão significa tolerar o diferente, a ideia oposta, o argumento contrário, o que nem sempre é agradável, ainda mais em contextos de polarização exacerbada, em que cada polo ideológico defende suas posições como barricadas, cuja derrubada poderia abrir espaço para a conquista de um território imaginário, em um jogo sem muitos ganhadores". De outra forma, caro leitor, só desenhando.

O País se deixou capturar por uma divisão ideológica que o tornou irreconhecível e o fez regredir no plano civilizatório. O fenômeno é inegável. Como não ilustrá-lo recordando Roberto Jefferson e suas reiteradas falas contra a dignidade de Ministros do STF? Como não incluir na lista os que se ajoelharam implorando por uma "ajuda" extraterrestre que impedisse o novo governo de tomar posse, agredindo o Presidente eleito com os piores palavrões?

O "discurso de ódio" não pode ser antena da liberdade de expressão. É isto sim narrativa que estimula, instiga, faz apologia da violência como linguagem de protesto. Se o cidadão é livre para exteriorizar o que pensa, não o é para ameaçar, atacar, nem destilar preconceito. Simples, não?

Volto ao professor Pierpaolo: "Por mais paradoxal que seja, para preservar a tolerância é preciso ser intolerante com aqueles que propalam o fim das liberdades públicas pela violência. O Estado de Direito não pode admitir a manifestação violenta pelo fim do próprio Estado de Direito".

É natural o inconformismo com a tese de uma decisão judicial; faz parte da consciência crítica coletiva o aprendizado para discernir entre o certo e o errado. A solução orientada pelo Direito, que não é ciência exata, mas produto do pensamento humano, sendo o homem por definição falível, usualmente haverá de desagradar a uns em contraponto a outros. A necessidade de riscar uma linha divisória entre o divergir e o exorbitar do divergir é aquilo que impede que o bonde vá ladeira abaixo sem freios e se arrebente mais adiante, vitimando todo mundo.

Encerro com Dostoiévski: "Há em tudo um limite que é perigoso transpor, porque, uma vez transposto, já não há processo de voltar-se atrás". Não tem para onde: coabitar em segurança jurídica é obedecer a limitações. A outra opção é o embarque no voo kamikaze da insensatez. Ainda que não saibamos por onde ir, que por aí nunca caminhemos.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado 

 

TAGS
discurso de ódio liberdade de expressão DEMOCRACIA
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory