Toda vez que a gente fala da palavra "realidade", parece que não estamos nos referindo a coisas boas: como se "realidade" fosse aquela coisa meio abstrata, meio concreta que temos que enfrentar, seja para superar, seja para aceitar ("que dói menos!"). E, talvez por isso mesmo, somos constantemente instados a ser... "realistas", a ir além do "princípio do prazer"!
Mas, pensando bem, se houve uma coisa na história das ideias que os homens nunca suportaram foi a tal da REALIDADE, e dela tentaram fugir seja para trás (como retorno a uma sociedade orgânica, pré-industrial e em harmonia com a Natureza, como propunha o movimento Hippie), seja para frente (o socialismo, por exemplo, como redenção coletiva ou a cristã salvação da alma individual), sempre imaginando que haveria a possibilidade histórica ou metafísica de viver uma vida que valesse a pena viver, como indivíduo ou como sociedade. Aliás, desde que fomos expulsos do paraíso e condenados à... realidade do trabalho e do sofrimento que desejamos que ele - o Paraíso- volte: para os cristãos esse Mundo não é do deles, e há um outro que os espera no além; para os materialistas históricos, a realidade da História é exploração e dominação de classe, mas uma nova sociedade nos espera, ao fim de um longo e tortuoso "processo"; para os platônicos o verdadeiro (real) mundo é o das Ideias: o resto é falsidade e aparência; para os educadores progressistas, o homem real, como o conhecemos, não presta: o verdadeiro ainda precisa ser formado para que possa transformar a... realidade ("A educação não muda o mundo, muda os homens; os homens é que..., etc, etc")! O que havia de comum em todas essas recusas e invectivas contra a "realidade" é que havia sempre uma forma secular ou religiosa de "sair" dela, superando-a historicamente ou imaginando paraísos espirituais.
Mas agora parece que não precisamos mais nem de passados idílicos nem de futuros pacificados: os algoritmos da Inteligência Artificial estão, finalmente, promovendo o FIM DA REALIDADE, aquela mesma que queríamos tanto combater. E não estou falando de "fake news", mas do fato de que posso visitar "presencialmente" passados que não existem mais, futuros que não existem ainda; posso modificar palavras ditas e ouvidas, situações vividas, discursos proferidos, posso estar em vários lugares ao mesmo tempo (uma ubiquidade antes só permitida a Deus!)... tudo isso apenas usando o algoritmo de meu celular. Aliás, não me canso de ver nossos jovens vidrados num smartfone e com os ouvidos tampados por headfones: acho isso mais do que simplesmente "simbólico" como recusa da realidade!
Além do mais, parece que caminharam juntas a crise da realidade com a crise da verdade: desmoralizamos o conceito "correspondencial" de verdade (aquele em que o conteúdo de nossos enunciados correspondiam às coisas do mundo); depois passamos a ver a verdade como obra "produtiva" do poder (Foucault); tudo isso no interior de uma crise da objetividade do mundo, depois que passamos a ver as coisas como construção subjetiva (consciência intencional) operada pela linguagem que, essa sim, produz a "existência" das coisas. Depois vieram a "pós-verdade" e as "verdades alternativas". Assim, parece que passar da crise da verdade para a crise da realidade foi só uma etapa!
Havia um risco no Castelo do Barba Azul de abrir aquela porta proibida: a consequência era a morte do curioso que a abrisse. Talvez, lembrando disso, cientistas do mundo todo têm pedido uma moratória nas pesquisas sobre IA. Ora, ora: a IA nos proporcionará o que desde o Mundo Antigo nós perseguimos e nunca conseguimos: vencer a "realidade", nem que seja de forma VIRTUAL. Queremos todos voltar à Caverna de Platão e, finalmente, felizes por não ter que sair de lá nem ter que aguentar um chato de um filósofo dizendo que estamos olhando pro lado errado. E assim como tornou-se possível "cancelar" a realidade, também não será mais necessário pensá-la: podemos agora dispensar ou aposentar aqueles equipamentos mentais de que dispomos para dar sentido e significado à realidade: em seu irresistível desenvolvimento a IA se encarregará do SENTIDO. Que alívio!
Flávio Brayner é uma criação do ChatGPT