Na curva da estrada

O bom eleitor é aquele que conhece a arte de filosofar, domina os princípios da hermenêutica e sabe aplicar as conclusões à realidade
DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Publicado em 03/06/2023 às 19:49
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente – órgão em fase de desidratação –, já percebeu que seus problemas são bem mais complexos do que qualquer livro intricado de matemática Foto: Bruno Spada / Câmara dos Deputados


Um sapateiro de Sumé, Paraíba, teve a paciência arruinada quando a filha avisou que iria cursar Filosofia. Os dois outros rebentos já haviam optado, com igual reação paterna, por História e Sociologia. Dentro de três ou quatro anos – comentou agastado o profissional - continuarei a bater sola de sapato porque vocês não arranjarão emprego.

Há poucos dias uma confraria de docentes do Departamento de Fundamentos Sociofilosóficos da Educação (DFSFE-UFPE) criou um grupo no WhatsApp. Uma participante fez a sua estreia com esse comentário: tenho dúvidas acerca da proficuidade da disciplina que ministrei porque os comentários dos meus ex-alunos se repetem: estou vendendo material elétrico; ajudo meu pai numa loja de comestíveis; estou trabalhando numa loja do shopping X; estou atuando na área de estética. Logo recordei dois comentários contidos na obra de Louis Pawels e Jacques Bergier – O Homem Eterno: “De um modo geral, a maioria das grandes construções do gênio científico (filosófico) não culminou em qualquer transformação do ambiente material em que vivemos, nem contribuiu para qualquer progresso da civilização ou para facilitar o domínio do homem sobre a natureza”. E concluem: “...homens de civilizações desaparecidas, com seu espírito irracional e sua visão aberrante do universo, chegaram a realizar proezas técnicas que desafiam nossa compreensão e desnorteiam nossas estimativas”. Anacronismo puro – digo eu.

Tais anotações arrastam o pensamento até a pauta do Ministério da Educação (MEC), sempre recordando que “os espíritos se assemelham aos paraquedas: só funcionam quando abertos”. Enquanto o MEC adquire os aparelhos, as demais instituições (máxime o Executivo e o Legislativo) revisitam o passado e discutem problemas econômico se correlatos: juros altos, aumento da inflação e da taxa Selic, marcos regulatórios; redução de impostos para os carros populares; esvaziamento dos Ministérios; criação de moeda única para a América Latina...

Mas não exageremos. O MEC também debate modificações no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb)–conjunto de 27 fundos e 1 no DF, de natureza econômica e contábil, formado em sua quase totalidade por recursos oriundos de impostos estaduais, municipais e federais.

O Fundo parece haver inspirado, nesse governo, a obrigatoriedade, no ensino fundamental, da disciplina “educação financeira”. Num país em que os professores vivem o pesadelo da falta de grana; num país em que os alunos poetizam “ser ou não ser é pão que não discuto” (Ruy Cinatti); num país em que a palavra democracia surge e se esvanece na neblina do amanhecer; a disciplina “educação financeira” espezinha e menoscaba a imaginação do povo: povo imaturo ou tolo que ainda acredita que seus candidatos irão cumprir as promessas de campanha e que os princípios são mais relevantes do que poder e dinheiro.

Por isso Marina Silva, ministra do Meio Ambiente – órgão em fase de desidratação –, já percebeu que seus problemas são bem mais complexos do que qualquer livro intricado de matemática: as questões oceanográficas e a ganância pelo petróleo.

Afinal, como diria Edmund Husserl, a realidade é um fenômeno que precisa, antes de tudo, ser interpretada e revelada. Marina desejaria anunciar que das 286 autuações do Ibama à Petrobras e suas subsidiárias, 273 estão relacionadas a atividades da empresa no mar ou na costa suplantando as 211 recebidas em 2022.

Esses dados ameaçadores não impedem a ação dos lobbies e dos grupos de pressão - ávidos ou famintos pela exploração do “ouro negro” na foz da bacia do Rio Amazonas. Enquanto Marina e Sônia Guajajara (com seu cocar imenso e colorido representando uma Valquíria no campo de batalha) refletem sobre esse entrevero, os governadores dos estados de Roraima, Alagoas, Piauí e Pará nomeiam suas consortes para o cargo vitalício de Conselheiro de Tribunal de Contas.

Estudaram e aprenderam com o nosso Presidente Lula que os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade não se aplicam aos parentes e amigos quando há promessas conjugais e jurídicas previamente acordadas.

Desfecho: o bom eleitor é aquele que conhece a arte de filosofar, domina os princípios da hermenêutica e sabe aplicar as conclusões à realidade. Nem que seja sobre a atuação por vezes enviesada do STF; sobre a democracia na “fase do soletrar”; sobre o poder esfalfado do povo; sobre a recepção de Lula ao presidente Nicolás Maduro com um tapete de eucalipto e madressilva para camuflar o “aroma” das ditaduras

Por fim, ainda pondero: o futuro nos espera, mesmo na curva íngreme da estrada. “Senhores! A hora vos pertence”.

Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora em ciências jurídico-políticas.

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Assinante Marina Silva
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