O fim das medidas de segurança e a interdição dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (II)

Como já salientado em comentários passados, as medidas de segurança foram introduzidas no Brasil pela redação original do Código Penal de 1940, autorizando o juiz criminal a estabelecê-las aos doentes mentais que eventualmente cometessem infrações penais
Adeildo Nunes
Publicado em 14/06/2023 às 22:42
A Lei de Execução Penal, também, de 1984, obrigou a criação dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico Foto: Secretaria de Ressocialização/ Divulgação


Considerando a enorme relevância do tema e as graves consequências que poderão advir após a recente edição da Resolução nº 487, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que instituiu uma nova política antimanicomial, estabelecendo novos critérios no âmbito do Poder Judiciário do país, voltamos a tratar do assunto, iniciado na quinta-feira passada (08-06), uma vez a sua implementação certamente ocasionará uma profunda reforma nas medidas de segurança e, especialmente, em relação aos hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos, que foram criados no Brasil em 1984, com a aprovação da Lei de Execução Penal.

Como já salientado em comentários passados, as medidas de segurança foram introduzidas no Brasil pela redação original do Código Penal de 1940, autorizando o juiz criminal a estabelecê-las aos doentes mentais que eventualmente cometessem infrações penais. Quando criadas, elas poderiam ser aplicadas juntamente com uma pena de prisão. Assim, o doente mental que praticasse um ilícito penal, poderia ser compelido a cumprir uma pena privativa de liberdade e, também, uma medida de segurança de internamento nos manicômios judiciários que já existiam em todos os recantos do país.

Com a grande reforma realizada em 1984 na Parte Geral do nosso Código Penal, o legislador entendeu que constatada a prática de infrações penais por parte de pessoas portadoras de doenças mentais devidamente comprovadas por laudo psiquiátrico, somente as medidas de seguranças poderiam ser fixadas, passando a definir que todos esses doentes deveriam ser isentos de pena, situação jurídica que até hoje predomina no ordenamento penal brasileiro (art. 26, Código Penal). A partir de 1984, bem por isso, comprovada a prática de crimes por parte do doente mental, somente o internamento compulsório ou um tratamento psiquiátrico poderia ser aplicado pelo juiz criminal.

Como dito, todas as pessoas que praticassem crimes ou contravenção penal, a partir de 1984, que comprovadamente apresentassem qualquer tipo de perturbação da sua saúde mental, portanto, que fossem incapazes de entender o caráter criminoso da sua conduta, passaram a ser isentos de pena, agora na condição de inimputáveis, pois não poderiam ser condenados pela prática de qualquer ilícito penal, fosse ele de extrema, média ou de pequena potencialidade ofensiva. Em verdade, a partir de 1984, o Brasil copiou o mesmo pensamento penal que já estava em vigor na Itália e na Alemanha: doente mental não pode ser considerado criminoso.

Em síntese, aos doentes mentais que se envolvessem na criminalidade, a partir de 1984, no Brasil, somente o internamento (para as doenças graves) ou o tratamento ambulatorial (para as doenças leves) poderiam ser aplicadas pelo juiz criminal, não importando a gravidade do crime, mas sim o tipo de doença diagnosticada pelo médico-psiquiatra.

Para acomodar os doentes graves, envolvidos com o mundo da criminalidade, assim, a internação passou a ser a medida mais eficaz e comumente utilizada, enquanto nos casos de doenças leves, a imposição do tratamento ambulatorial comumente passou a ser aplicado pelos juízes.

Para tanto, a Lei de Execução Penal, também, de 1984, obrigou a criação dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, especificamente com a finalidade de acomodar os doentes graves, submetidos à internação, em substituição aos antigos manicômios judiciários. Incluídos no rol dos estabelecimentos prisionais, esses hospitais passaram a ser administrados pelos Estados, um misto de prisão e de casa de saúde, diferenciados das prisões, porém, porque sua população foi destinada exclusivamente a pessoas com doença mental que necessitassem de um tratamento psiquiátrico.

Ocorre, entretanto, que esses hospitais, onde existem – quase em sua totalidade - jamais cumpriram com o regramento estabelecido pela Lei, já que até hoje apresentam carência de médicos, enfermeiros e técnicos de saúde, sem contar que a falta de medicamentos e de assistência social aos seus pacientes comprovam a sua ineficiência e a falta de vontade política para o fiel cumprimento da lei.
Devido a esse descaso, a partir de 2001, com a Lei Federal nº 10.216, o Brasil tentou remediar as deficiências dos hospitais de custódia, quando deu nova dimensão institucional às pessoas acometidas por doenças mentais, contudo, a lei não vingou e o fracasso no tratamento dos doentes mentais envolvidos com o crime permanece presente.

Considerando as péssimas condições físicas e materiais dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos, o Conselho Nacional de Justiça resolveu intervir, editando a Resolução nº 487, recomendando aos seus juízes atitudes enérgicas e drásticas no sentido de preservar a dignidade humana.

As principais recomendações foram: a) no prazo de até 6 (seis) meses, contados da Resolução, a autoridade judicial competente revisará os processos a fim de avaliar a possibilidade de extinção da medida em curso, progressão para tratamento ambulatorial em meio aberto ou transferência para estabelecimento de saúde adequado, nos casos relativos: I – à execução de medida de segurança que estejam sendo cumpridas em HCTPs, em instituições congêneres ou unidades prisionais; II – a pessoas que permaneçam nesses estabelecimentos, apesar da extinção da medida ou da existência de ordem de desinternação condicional; e III – a pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial que estejam em prisão processual ou cumprimento de pena em unidades prisionais, delegacias de polícia ou estabelecimentos congêneres; b) a autoridade judicial competente para a execução penal determinará a elaboração, no prazo de 12 (doze) meses, de PTS para todos os pacientes em medida de segurança que ainda estiverem internados em HCTP, em instituições congêneres ou unidades prisionais, com vistas à alta planejada e à reabilitação psicossocial assistida em meio aberto, a serem apresentadas no processo ou em audiência judicial que conte com a participação de representantes das entidades envolvidas nos PTSs; c) no prazo de 6 (seis) meses, a autoridade judicial competente determinará a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, com proibição de novas internações em suas dependências e, em até 12 (doze) meses a partir da entrada em vigor da Resolução, a interdição total e o fechamento dessas instituições.

Aguardemos, todavia, os resultados práticos do inteiro teor da Resolução.

Adeildo Nunes, juiz de Direito aposentado, professor, mestre e doutor em Direito, advogado criminalista, sócio do escritório Nunes & Rêgo Barros – Advogados Associados

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