Sobre desejos e cicatrizes

Palavras sem significado. Ensaio de um livro para o clube do livro
JOÃO HUMBERTO MARTORELLI
Publicado em 13/07/2023 às 0:00
Sobre desejos e cicatrizes Foto: Thiago Lucas/ Design SJCC


Teria de falar sobre desejos e cicatrizes. Ter um desejo apesar da cicatriz. E sobre fluxo, o jorro ininterrupto, não se distingue o que é sangue, nem o que é lágrima, e a saliva se mistura com um olhar espantado de alegria e de vômito. E não teria alguém, nem para alguém, nem vindo de alguém, a exclusão completa de outra pessoa, somente o eu, aí talvez fosse interior e íntimo, embora não se possa excluir a influência dos outros, das outras, de todas as pessoas sobre a terra, que são tantas, e fazem tanto mal, um espaço vazio e interminável só de plantas, não de animais, eles não teriam lugar, nem insetos, a planta inexpugnável. Excluir todos os nomes próprios. Um lugar solitário, não se sabe como fazer o nexo com sexo, quem sabe lá como seria viver sem. Mas não caberia ninguém, eis um teorema ainda sem solução.

A apoteose da estética, as palavras sem significado, para quem não souber ler, emplumadas, em silicone. A criação de um mistério em retrospectiva, sem futuro também. Uma caminhada longa, percorrer a distância sem noção do tempo, porque o tempo se viveu, e tempo e vida se misturaram, e não se pode apalpar o tempo, e surpresa, também não pode apalpar a vida, e o caminho é de estrada empoeirada, logo asfaltada, logo um rio, depois uma vereda na mata, não há caminho, nunca se caminhou. Vórtice de vida e morte, talvez, não tem como descobrir. Tanta perda. A perda dá vontade de morrer, mas não se morre, porque o homem vive para perder, e há quem perca a visão, há quem perca a força, há quem perca o amor, mas em tudo se dá jeito. Não que seja bom ter esperança. O melhor é não ter sentimento.

Garra, esportes, mar, vencer, estourar champanhes, ficar rico, dobrar o adversário, celebrar aniversário, bebezinho de mamãe vai para a escola com lancheirinha, dentro tem pão com ovo, uma banana, um doce e suco de laranja, o cheiro do ovo fica para sempre, o cheiro podre de todas as coisas. Nessa altura do pensamento na infância já é adulto, e que significado pode ter a infância, salvo para dar explicações de gestos insensatos, gestos insensatos de adulto. E há sobretudo o medo, ser abandonado, a rejeição, o ladrão, o escuro, o incompreensível deus e todos os santos, o pecado, a carne, o medo do outro. E o medo de mudar e de não ser mais quem se é, para se tornar alguém que se deseja ser, sem poder. E de não ter o que se quer, a ansiedade. Não existe remédio para a ansiedade, a não ser a falta de desejo, a mais limpa e completa ausência, a purificação. Não em santidade, em demônio.

Um estado em que todas as cicatrizes se tornem em abscessos, purulentas, repulsivas, nojentas, e afastem qualquer desejo, até abolir a própria ideia de desejo.

Eis aí um bom livro para o clube.

João Humberto Martorelli, advogado  

 

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