Hoje, saio da seqüência recente de reflexões sobre o fantasma do "comunismo" e a fugidia toada "anti-capitalista" (algo sem configuração precisa e sem esboço do que substituiria a propriedade privada). E pego o galho da literatura, especificamente da crônica. Tal impulso veio do prazer de uma descoberta (assaz tardia) e da penitência por meu atraso em atentar para o que estava, para mim, à escancarada disposição em minha biblioteca.
O cidadão que faz o título acima é um nonagenário escritor de Alagoa Nova, município do Brejo paraibano que abriga o engenho produtor de Serra Preta, aguardente com 45 de grau etílico, deliciosa, que desce redondinho. Radicado na capital João Pessoa há mais de 60 anos. Meu pai, com infância curtida no seco e árido município de Soledade, Cariri paraibano, veio a ser um dos amigos de Gonzaga, com direito a boas conversas com ou sem cachaça. Havia identidade de visão humanista.
Agora, as raízes da penitência que faço e do prazer a que me referi. Conheci GR em 24/01/1999, em seu apartamento em João Pessoa, levado por meu pai - este, vindo do Rio de Janeiro, para onde migrou com a família, em 1974, depois de morada de cerca de cinco anos em Recife. Fui, naquele final dos anos noventa, mimoseado pelo escritor com a oferenda de crônicas reunidas em 'Filipéia e outras histórias' e 'Um sitio que anda comigo', além de um livro de diversos autores, ele inclusive, sobre a história da Paraíba. Talvez pela distração com respeito ao que é de nossa aldeia, e maior atenção ao que vem de longe - coisa de colonizado - fui adiando a leitura do que era um tesouro e eu ignorava. Trago aqui o que anotei, a lápis, abaixo do autógrafo no "Filipéia": 'Enfim, percebido. Quanto atraso! 19/03/2023'. Esta última data (de nova visita a GR, em companhia do paraibano quase-recifense Francisco Cartaxo) tem a ver com fatos que me levaram de volta ao janeiro/1999. Evito outros detalhes, para não incomodar o eventual leitor. Vamos ao que mais interessa: evidências da grandeza desse grande cronista que é Gonzaga Rodrigues.
'Filipéia' me trouxe uma percepção que logo se revelou, a meu ver e sentir, irrefutável. Traços de Graciliano Ramos, uma de minhas leituras de adolescente, agora na grande prateleira de releituras. Gonzaga fala do local e leva o leitor ao universal, com admirável maestria. O domínio e a leveza da palavra lembram a prosa do cuiabano Manuel de Barros, mais cultuado como poeta (na verdade, também faz prosa e prosa poética). Embora sejam estilos diferentes, o amor à palavra é traço comum. Já 'Retrato de Memória' (2010) mostra que Gonzaga vai além da crônica e faz o que pode ser uma novela, assim reconhecido por categorizados críticos. (Ângela Bezerra de Castro - 'No claro-escuro da linguagem', apresentação), Luiz Augusto Crispim ('Um entalhador da ficção', prefácio) e Adalberto Barreto ('Retrato do Pai', orelha) dizem isso e mais com a devida propriedade de formação literária, o que obviamente não é o meu caso.
Além de 'Retrato de Memória', o autor também autografou e me passou 'Café Alvear' e 'Com os olhos no chão' (2022), o livro mais recente, que traz uma seleção - sob direção do autor - de crônicas de sua vida. 'Retrato' e este último são leituras que podem dar, a quem ainda não o conhece, apropriada visão da obra do escritor paraibano Gonzaga Rodrigues. Aqui recorro a Antonio Barreto Neto, que faz a contra-capa de 'Com os olhos no chão': "Resultado de um laborioso processo de burilamento estilístico, suas crônicas atingem aquele grau de depuração em que uma funcionalidade sóbria, mas precisa, sublinha, na medida exata, a relação entre o que é dito e a forma de dizer".
Para mim, Gonzaga é escritor do quilate e da grandeza de Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, e do recifense Antonio Maria. Como cidadão e agora leitor dileto desse formidável escritor, tenho dito. [Faço deste artigo uma oferenda póstuma a meu pai, Manoel Patrício de Araujo].
Tarcisio Patricio, doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado.