OPINIÃO

Literatura e futebol

E como se pode dar o enlace entre o futebol e a literatura, sendo paixões tão díspares?

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ROBERTO PEREIRA

Publicado em 20/10/2023 às 0:00 | Atualizado em 20/10/2023 às 8:12
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Os gênios se equivocam quando vaticinam sobre assuntos que não lhes são peculiares. Graciliano Ramos enganou-se, quando, em 1921, numa crônica prognosticou que o futebol no Brasil nunca ia pegar. Indagava: "por que metermos o bedelho em coisas estrangeiras?" O autor de Vidas Secas invoca os esportes nacionais, ênfase especial para a rasteira, portando-se incrédulo quanto à sedimentação, em nosso país, do esporte de origem inglesa, e que depois nos faz os melhores do planeta, com um ativo de craques que, até o início deste século, entusiasmou o olhar contemplativo dos desportistas. Hoje, atravessa lamentável declínio.

Graciliano, que deu no Brasil o pontapé inicial, com relação à descrença do futebol no gosto popular, não alcançou Ananias, jogador do Santa Cruz, que perguntado sobre o seu prognóstico de um jogo, costumava responder: "prognóstico somente depois da partida."

Edilberto Coutinho, com o seu livro premiado, Maracanã, Adeus, enfeixou contos ligados ao futebol, quando este esporte importado já estava na alma do nosso povo, incorporando-se à cultura de nossa gente, a ponto de o escritor José Lins do Rego, torcedor vibrante e assíduo do Flamengo, onde ocupou cargos no Conselho, inclusive o de presidente do Flamengo, ter assegurado: "O conhecimento do Brasil passa pelo futebol." O esporte lúdico é um fenômeno sociocultural, considerando o futebol como parte da cultura, no Brasil, de relevante importância.

Quando foi morar no Rio de Janeiro, o escritor José Lins do Rego se toma pela paixão flamenguista, passando a ser um cronista do futebol, escrevendo mais de 1.500 crônicas sobre a performance de cada equipe, consoante as partidas disputadas. Como torcedor, participava das emoções dos jogos do Flamengo. Chegou a dizer: "Vou ao futebol e sofro como um diabo."

E como se pode dar o enlace entre o futebol e a literatura, sendo paixões tão díspares? Flávio Carneiro, ex-ponta-direita, depois literato, quando escreveu Passe de Letra: futebol & literatura, assegura: "há mais coisas entre o céu e a pequena área do que supõe nossa vã filosofia," declarando seu amor à "redondinha," mediante suas recordações afetivo-futebolísticas, admirando, por exemplo, Pelé e Garrincha, este, um lírico, aquele, um homérico, épico na sua trajetória de superação, segundo Flávio.

Muitos dos poemas e crônicas de Carlos Drummond de Andrade se inspiraram nesse esporte, desde então a maior paixão do brasileiro. "Marcar mil gols, como Pelé, não é tão difícil. Marcar um gol como Pelé é," uma das assertivas do poeta mineiro.

Tem razão Gilberto Freyre, quando diz: "Futebol caracteriza-se pelo prazer da elasticidade, da surpresa, da retórica, que lembra passos de dança e fintas de capoeira."

O poeta João Cabral de Melo Neto foi diferente: jogou, de center-half (volante) no Recife, pelo América e, depois, aos 15 anos, foi campeão juvenil, pelo Santa Cruz. Cabral, dentre outros poemas, imortalizou Ademir da Guia, com a poesia que levou o nome do craque, cuja primeira estrofe vale a pena recordar: "Ademir impõe com o seu jogo / o ritmo do chumbo (e o peso) / da lesma, da câmara lenta, / do homem dentro do pesadelo."

Também a moral e a ética, a estética e o emocional foram consagrados na frase de Albert Camus, escritor e, na juventude, goleiro, quando disse: "O conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol."

"Lá vai Pelé pintando e bordando, tocando a bola e trocando com ela mil confidências que os parceiros de jogo não advinham jamais," repito com Armando Nogueira, que trouxe a poesia para o futebol. Termino com Nogueira, à época em que Pelé jogava, homenageando o atleta do século 20, aquele que, com os pés, fazia poesia. "Lá vai Pelé com a bola que Deus lhe deu."

Roberto Pereira, ex-secretário de Educação e Cultura de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Eventos e Turismo (Abevt).

 

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