Na Ucrânia, a maior mobilização militar em território europeu já se estende por quase dois anos, produzindo mais de meio milhão de baixas civis e militares. Na contagem, as muitas dezenas de milhares de não combatentes que foram mortos ou severamente feridos por disparos de artilharia, mísseis, drones explosivos e minas terrestres. Dentre eles, milhares de crianças cujas infâncias foram simplesmente roubadas pelo espírito demoníaco que habita nos bárbaros agressores. Para além dos óbitos e das lesões físicas, há a orfandade, o testemunho das atrocidades, os estupros, as explosões que roubam o sono e perpetuam o medo, as abduções, e todo um catálogo que enforma um passivo emocional irrecuperável que aflige a todos os cidadãos, mas que marca com particular agudeza as vítimas de tenra idade.
Também elas figuraram entre as vítimas da covardia terrorista em Israel: foram alvejadas ou sequestradas, presenciaram a vandalização de lares e o assassinato de pais e parentes próximos. Escondidas em "bunkers", seguiram aterrorizadas pelo reiterado assobio das sirenes que precedem as explosões deflagradas pelas defesas anti-aéreas e pelos mísseis cadentes.
Na Palestina, uma população civil forçosamente confinada em estreita faixa de território, é vítima da indiscriminada vingança. A fome, a sede, a escuridão são as companhias certas dos infantes que, sem condições de fuga, vêm sucessivos prédios ruindo sob o peso do implacável bombardeio dos judeus em fúria, ceifando vidas de parentes e amigos cuja única culpa pode ter sido nascer em uma região conflagrada, onde a emigração é impossível.
No plano das humanidades, há algo indiscutível: as crianças ucranianas, israelenses ou palestinas têm idêntica dignidade e são merecedoras de uma mesmíssima proteção por parte da comunidade internacional. Apesar do raciocínio valer para toda a população civil, a particularização dos muito jovens se presta a eliminar por completo eventual sombra de dúvida de não serem elas passíveis de qualquer punição por prévia violência ou engajamento militar. São indiscutivelmente inocentes. E a incondicional proteção de todas elas deveria ser uma preocupação dos que se dizem civilizados. Mas a verdade é que também a geopolítica padece dos problemas da incoerência pela dualidade de padrões morais e de uma indignação que, por vezes, parece ser seletiva.
Os estadunidenses, que declaradamente reivindicam a ocupação de um altiplano moral (o tal do "moral high ground"), bem como os israelenses (estes porque já sentiram na própria carne a dor de uma barbárie indiscriminada contra todo um povo), mostram marcante insensibilidade às violências cometidas contra as crianças palestinas que vêm sendo enterradas vivas sob os escombros das próprias casas, hospitais e escolas.
Fora do plano retórico, o fato é que inexiste qualquer ação efetiva da comunidade internacional para coibir o extermínio de inocentes, numa lógica incompreensível onde a eliminação de um único terrorista pode legitimar o assassínio de dezenas, centenas ou milhares de desventurados, involuntariamente presos nas próprias casas, e a quem agora só resta a proteção divina. É indiscutível a existência de um direito de autodefesa por parte dos agredidos, mas este deve mirar os agressores, e não uma legião de inocentes que é severamente castigada por simplesmente não ter para onde ir.
A postura da maior parte das lideranças ocidentais representa o triunfo do mal e da barbárie sobre a virtude e a civilização. Isso porque dos virtuosos espera-se a perseverança nos nobres valores, independentemente da desumanidade alheia, e não uma equiparação na vilania sem limites. E porque a civilização impõe o respeito aos limites da legalidade e o desapreço à lei de talião, que nesse caso se presta, apenas, à disseminação da cegueira moral, à perpetuação dos ódios e à renúncia à nossa essência humanitária.
Ronnie Preuss Duarte, advogado e ex-presidente da OAB -PE