OPINIÃO

A carta de Dalva

A fronteira, contudo, continua permeável e somente uma ação eficaz do Estado poderá assegurar total soberania sobre o território brasileiro. Os militares já estão por lá, restam os outros

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OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS

Publicado em 09/12/2023 às 0:00 | Atualizado em 09/12/2023 às 10:25
Essequibo, território rico em petróleo, é objeto de uma disputa centenária entre os vizinhos Venezuela e Guiana - Martín SILVA / AFP

Este artigo é baseado em uma história real, com pinceladas de ficção, e aborda uma situação vivida por um oficial brasileiro na fronteira com a Guiana, na região conhecida como Guiana Essequibo.

Em agosto de 1968, o Segundo-Tenente Asor foi transferido para o então 27º Batalhão de Caçadores, localizado em Manaus. Nordestino de boa cepa, sua nova designação o colocou diante de mudanças vertiginosas na vida pessoal e profissional.

Em 6 de janeiro de 1969, eclodiu a revolução guianense, uma espécie de "proxy war" fomentada pela Venezuela, que reivindicava uma área equivalente a dois terços do território da Guiana. A independência da antiga colônia inglesa ocorreu em 1966, mas a proteção do Reino Unido persistiu até 1969, quando a responsabilidade pela defesa nacional passou para a GDF (Guiana Defense Force), tropa equivalente a um batalhão de infantaria, com cerca de 700 militares.

Rebeldes contrários à independência, apoiados pela Venezuela, copiaram o modelo histórico da secessão do Texas nos Estados Unidos, buscando autonomia para, posteriormente, solicitar anexação ao país apoiador. As famílias Melville e Hart, proprietárias rurais, foram o epicentro desse movimento, que não prosperou devido à falta de preparo militar.

A GDF foi implacável, pressionando os rebeldes em direção à fronteira do Brasil, onde alguns buscaram refúgio. Na incursão, trinta e cinco deles foram capturados pela tropa brasileira em Normandia.

Asor estava em Manaus quando foi informado sobre sua transferência para a fronteira de Roraima. O grupamento, liderado pelo lendário Coronel Teixeira (Teixeirão), comandante do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), acampou em Bonfim. Asor foi designado comandante de um pelotão destacado, chegando ao local de vigilância por via aérea, aterrissando em pistas improvisadas no lavrado, próximas ao rio Tacutu.

Após 22 dias acampados em barracas, em condições logísticas precárias e dificuldades de comunicação, a situação na Guiana acalmou-se, e eles foram evacuados para Boa Vista. Na ocasião, o comandante militar da Amazônia, General Rodrigo Octávio - autor da épica frase: "Árdua é a missão de desenvolver e defender a Amazônia. Muito mais difícil, porém, foi a de nossos antepassados de conquistá-la e mantê-la." -, afirmou que se a Venezuela invadisse a região contestada, as tropas brasileiras também invadiriam a Guiana para recuperar os marcos portugueses da Serra do Pirara, reconhecidos pelo laudo arbitral do rei da Itália como pertencentes à Inglaterra.

Com a situação estabilizada, o grupamento retornou a Manaus. Contudo, em março do mesmo ano, a crise recrudesceu e Asor retornou à fronteira. Seu pelotão permaneceu em Bonfim por mais 24 dias, até ser substituído. Outro tenente da companhia, chamado Atorcha, foi destacado para a região de Surumu e depois para o Marco BV-8, formando a Vila Pacaraima, onde permanece até hoje.

Apesar do clima de crise, havia espaço para momentos idílicos. Duas brasileiras, mãe e filha, parentes dos Melville e residentes próximas ao posto de vigilância UNO do pelotão de Asor, no rio Tacutu, foram detidas para averiguação na chefatura de polícia de Lethem, do outro lado da fronteira. Dias antes, em uma festa improvisada, Asor conhecera a jovem e ficara encantado, embora tivesse sido preterido por outro pretendente.

Preocupado com o tratamento sumário dado pelos guianenses aos rebeldes, Asor atravessou o rio Tacutu sozinho e desarmado para falar com o comandante local da GDF, Primeiro-Tenente Sings. Apesar de não estar fluente em inglês, conseguiu se comunicar adequadamente. Ao retornar, soube que as mulheres foram liberadas.

Passados quatro meses e já no batalhão em Manaus, Dalva escreveu uma carta para Asor, propondo-se a morar com ele. O flerte ficara na fronteira. Dalva jamais recebeu resposta à sua missiva. Uma temeridade com final feliz como essa só seria possível nas condições peculiares que Asor enfrentou e sob o abrigo da proteção divina. Agora reformado, ele construiu uma carreira de sucesso, sendo uma referência de liderança para a Força Terrestre.

Hoje, os pelotões de fronteiras são muito mais estruturados, recebem apoio frequente por meio da Força Aérea, e muitos têm instalações que permitem inclusive a presença de familiares.

A fronteira, contudo, continua permeável e somente uma ação eficaz do Estado poderá assegurar total soberania sobre o território brasileiro. Os militares já estão por lá, restam os outros.

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

 

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