OPINIÃO

Fuente Vaqueros – A infância

Aqui nasceu e aqui viveu sua primeira infância o maior poeta espanhol, Federico Garcia Lorca. O ar que se respira é impregnado de reminiscências, como se vivêssemos as fortes impressões do infante poeta

Cadastrado por

JOÃO HUMBERTO MARTORELLI

Publicado em 11/01/2024 às 5:03
Federico Garcia Lorca, poeta espanhol - Fundación FGL

Em Fuente Vaqueros, comunidade autônoma da região da Andaluzia, província de Granada. Pequena. Não se percebe aqui e agora, mas foi uma aldeia plena de espíritos críticos, bolcheviques sempre contra a autoridade. Aqui nasceu e aqui viveu sua primeira infância o grande poeta espanhol, Federico Garcia Lorca. Percorro os caminhos do poeta, debaixo do braço a excelente biografia de Ian Gibson e a obra poética completa.

O ar que se respira é impregnado de reminiscências, como se vivêssemos as fortes impressões do infante poeta: a convivência com as famílias miseráveis da aldeia, a proibição das visitas no dia de lavagem das roupas, porque, enquanto elas secavam ao sol, seus membros ficavam nus dentro de casa; a contemplação dos defuntos, a grande marca da morte no menino, o perfil do morto, na Espanha, diria o poeta mais tarde, corta como o fio de uma navalha de barbeiro; a tremedeira e a vergonha quando um colega da escola mista perguntou se gostaria de ver as meninas nuas, impossível não lembrar Bandeira em Evocação do Recife, quando viu uma moça nuinha no banho, e foi seu primeiro alumbramento (as impressões dos poetas se tocam no universo invisível em que flutuam os versos).

Esta Vega de Granada (Vega é uma planície fértil entre montanhas) ainda se mostra como antigamente, no início do século XX, abundantes mananciais, prados, plantações, bichos selvagens, gado, o trabalho da terra. Estará aí neste momento, ou sou-me transplantado? Não importa. Diz-se do poeta que ele tem complexo agrário.

De fato, tudo em Lorca está relacionado à natureza e a essa origem peculiar e bela, árvores, flores, montanhas, lua, rio, seres humanos trabalhadores da terra, os versos em riste – vento do sul, ar do norte, mosquitos da rosa de pétalas pirâmides, choupo mestre da brisa, o cavalo na montanha, o frio olhar de prata ao luar. Ele mesmo assim expressa a identidade original: Toda a minha infância centrou-se na aldeia.

Pastores, campos, céu, solidão. Simplicidade total. São detalhes autênticos, e se a muitos parecem estranhos, é porque não é muito comum termos com a vida um trato assim tão simples e direto: olhando e escutando. Uma coisa tão fácil, não é mesmo? Tenho um enorme armazém de recordações da infância em que posso ouvir o povo falando. Isto é memória poética e nela eu confio implicitamente.

Ainda hoje, ver e ouvir os habitantes desta pequena cidade é uma plataforma rica para compreender em grande extensão a linguagem metafórica de Federico, seja no teatro, seja na poesia. Sua memória poética tem uma ligação ancestral com a natureza e com as pessoas do lugar, em mais uma demonstração de que o mundo nos prende em um sentimento celular quase uterino, nele residindo a veia seminal da poesia. E que se projeta nos espaços posteriores, como aconteceu com o poeta na cidade de Granada, o que veremos adiante, noutra coluna. O universo é um pequeno belo ponto verde.

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