No frenesi das polêmicas da internet, e como elas são oxigênio e alimento para muitos, ungindo-se ao condão de regra a obrigatoriedade de sacar de qualquer pretexto para dar o que fazer a uns e outros, o dono da rede social X, antigo Twitter, resolveu disparar, em feitio de pergunta com viés provocador, que o Brasil atravessa tempos de relativização da garantia da liberdade de expressão. Escreveu o empresário, dirigindo-se ao Ministro Alexandre de Moraes, do STF, e à própria Corte, de carona em postagem daquele primeiro: “Por que você [o Ministro] está determinando tanta censura?”.
Admita-se que há na “alfinetada” do magnata sul-africano um quê de desabafo em certa escala possível, na perspectiva de decisões tomadas no Inquérito 4874 (“milícias digitais”). O problema é que Elon Musk cruzou o rubicão e o fez ao acusar um alto servidor público da magistratura (e seus pares por osmose), sem provas, da prática dolosa, ignominiosa e hedionda da censura.
A máscara cai aí nesse momento. A pergunta nunca foi pergunta, ao trazer em si a resposta que o perguntador já sabia desde sempre. Tornou-se uma afirmação. Comenta-se que Elon Musk gosta de ser visto como defensor absoluto da liberdade de expressão, recusando-lhe freios e contrapesos. Seu “tweet” do último dia 6/4, à luz desse contexto, é uma ode à contradição.
Despreza que traçar limites à liberdade de expressão não é censurar. Não é atividade ditatorial. Se fosse, a pretexto de exercer dita liberdade verbalizando o que lhe desse na telha, qualquer pessoa estaria livre para acusar outra sem provas, xingar e ofender. Em suma: seria uma autêntica “festa no apê”.
Em xeque mais que a cláusula do “freedom of speech”. Na alça de mira, a higidez da fórmula democrática. Veja-se bem o seguinte. Diversos e-mail’s internos do Twitter (atribuídos a consultores e diretores da empresa), de acordo com a imprensa, foram vazados para convencer a opinião pública de que a Justiça Eleitoral, presidida adivinhe-se só por quem durante o ano de 2022, estaria a
censurar as “big techs” e a espionar indiscriminadamente usuários. Não vem de agora a arenga.
Fora atribuir a censura em padrão continuado a um Ministro do mais importante Tribunal de um País estrangeiro, Elon Musk ameaçou não mais cumprir determinações emanadas daquele Poder Judiciário, e, de quebra, sapecou que restabeleceria contas suspensas de usuários propagadores de desinformação (“fake news”). E, então, será que ainda continua tudo bem, no escopo da garantia da liberdade de expressão?
Ora, ainda que se controverta se há (ou não) indícios da “dolosa instrumentalização das redes sociais” por determinada corrente de pensamento político, sendo, como são, empresas e operando, como operam, em território nacional, as plataformas de rede social não têm a discricionariedade de escolher se sujeitarem ou não às leis brasileiras. Daí porque avançar na regulação das redes sociais, ajustando-as à Constituição e suas fronteiras, sem que isso seja etiquetável de autoritário. A pauta é inevitável sobretudo porque o Marco Civil da Internet (2014) e a LGPD (2018), na corrida, ficaram para trás. É hora de tirar do papel o PL 2.630/2020.
O mundo vem se ocupando do assunto. E tem cada vez mais legislado a respeito. O que explica o Brasil estar de fora? É inócuo, pois, discutir a necessidade da regulação. Releva mais saber quando e como ela se dará.
Se a internet ampliou o acesso ao conhecimento, também é certo que permitiu as mentiras, os discursos de ódio e a destruição de reputações. Uma coisa é você publicar em rede social que querosene é boa para COVID e os seus tantos seguidores acreditarem nisso; outra coisa é a notícia se espalhar por centenas de milhares de pessoas, quando aí o problema passa a ser de saúde pública.
Locke, referido por Pedro Serrano, escreveu: “Livre é o ser que é dono do próprio corpo e que ao mesmo tempo não pode ser dono do corpo do outro”. De uma decisão judicial se recorre (e nem isso é uma possibilidade ilimitada) e não se parte de faca nos dentes contra aquele que, ungido pelas normas de um povo, a prolatou. Resistir a essa máxima é, na era moderna, o pecado original.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado