OPINIÃO

Era só o que faltava no Capibaribe

Que as chuvas do inverno sejam brandas e que o rio seja tolerante com quem não sabe o que faz. Que seja paciente e solidário com quem construiu suas casas nas margens de risco por absoluta falta de opção.

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SÉRGIO GONDIM

Publicado em 07/06/2024 às 0:00 | Atualizado em 07/06/2024 às 10:34
Fotos de Recife e por do sol / Recife Antigo/Rio Capibaribe - Tião Siqueira

O rio de curvas charmosas e sensuais, entrecorta a cidade como um colar de pérolas embelezando o corpo. Acolhe afluentes, aceitando águas do agreste e zona da mata. Costuma ser calmo, mas por vezes desceu valente reclamando o espaço que já foi seu, desabrigando invasores. Foi preciso conter a sua força e disciplinar a vazão para proteger o Recife.

Já foi água de Capivara e era um bom lugar para mergulhar e pescar, mas isso faz muito tempo.

Cantado em prosa e verso, ao chegar na região metropolitana fez a cidade crescer às suas margens com todo mal que isso pode causar. Mesmo havendo muito a ser feito para minimizar os danos, continuam em larga escala e segue recebendo plástico, muito plástico, geladeira velha, sofás, todo tipo de lixo, resíduos domésticos e industriais. Apesar de tantas agressões, quando largaram uma criança recém-nascida na correnteza, a acolheu e acalmou suas águas até que fosse resgatada boiando serenamente. De tão maltratado, já quase não tem peixes e é de se imaginar que os que ainda não morreram deveriam ser proibidos para consumo humano, considerando o alto risco de contaminação.

A certa altura falou-se em usá-lo para transporte coletivo. Aceitou prestar esse serviço, mas fez exigências: que fosse dragado, limpo e revitalizado, o que teria sido possível se planejado sem terceiras intenções, mas isso só acontece em lugares onde tal tipo de planejamento existe. Só restou a placa que anunciou a obra e o prejuízo para os cofres públicos, ocorrência muito comum por essas bandas.

Tem de tudo no Rio Capibaribe e a pesca se adequou às mudanças. Passou a usar instrumentos direcionados à captura do que mais se encontra no rio. Aposentou a vara de pesca, a rede, a tarrafa e como o rio agora tem mais metal do que peixe, a pescaria é feita com um ímã. Naquele dia, o pescador de metal esperava pegar uma moeda, um parafuso, ou com sorte um relógio a prova d'água, mas o último produto pescado foi uma granada que repousava no fundo do rio. A surpresa não foi só pescar uma granada no rio, mas também o fato de ninguém ter percebido e denunciado a sua falta. De onde terá vindo, onde estarão as outras, quem cuida?

Especula-se sobre o que teria motivado a escolha do local para o descarte. Se fosse uma manga rosa, diria que a ideia seria alimentar saudavelmente os peixes e caranguejos. Se foi uma oferenda, certamente a santa não gostou do presente bélico, pois geralmente prefere flores com uma água de cheiro, no máximo. Se foi pensando em um bom esconderijo para o artefato roubado e impróprio para os festejos juninos, escolheu mal. O Capibaribe já aguentou muita coisa, mas não aceita um desaforo desses.

Que as chuvas do inverno sejam brandas e que o rio seja tolerante com quem não sabe o que faz. Que seja paciente e solidário com quem construiu suas casas nas margens de risco por absoluta falta de opção.

Sérgio Gondim, médico

 

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