OPINIÃO

A Revolta das Saias, a independência da Escócia e a IA

Escrevi esse texto para mostrar que a criatividade humana não conseguirá ser suplantada pelos recursos de inteligência artificial. Como humanos, devemos lutar contra isso.

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MARIANA ARAÚJO

Publicado em 11/06/2024 às 0:00 | Atualizado em 11/06/2024 às 9:38
A Revolta das Saias, a independência da Escócia e a IA - Thiago Lucas/ Design SJCC

Você provavelmente nunca ouviu falar da Revolta das Saias, um fato determinante para a independência da Escócia. Isso está diretamente relacionado com um grande símbolo da cultura daquele país: o kilt, a vestimenta masculina que parece uma saia e que, normalmente, tem estampa xadrez. Vamos contar os fatos por ordem cronológica.

Lá pelos idos dos anos 1.200 e alguma coisa, uma doença misteriosa atacou as ovelhas de condados escoceses. A lã feita a partir do pelo das ovelhas era de extrema importância na época para confeccionar vestimentas e proteger os moradores da região do frio. Com a redução dos rebanhos de ovelhas, os feudos aumentaram os impostos sobre a produção de lã. A ampliação dos tributos gerou uma grande insatisfação.

No meio de toda essa briga por poder e dinheiro, a voz de uma mulher começou a ganhar destaque. A camponesa Mary McGolnagh sentiu-se injuriada com a cobrança excessiva de impostos e iniciou um movimento que, mais tarde, foi incorporado à independência escocesa.

Mary McGolnagh tinha seu próprio rebanho de ovelhas e um tear nas terras que lhe cabiam dentro do feudo. Mãe de três filhos ainda crianças e casada com um homem que lhe ajudava na lida do campo, ela era uma importante confeccionadora de vestimentas, especialmente de calças para os homens.

Com a escassez da lã, Mary McGolnagh deu aquele que talvez tenha sido o primeiro grito feminista da história da Escócia: passou a produzir apenas saias. Na época, as vestimentas femininas não eram taxadas, mostrando a desimportância aplicada às mulheres no período feudal. Sem opção, os homens passaram a adquirir as saias.

O movimento ganhou corpo em toda a Escócia e recebeu o nome de Revolta das Saias, chegando aos teares comandados por famílias que estavam cansadas de pagar impostos cada vez mais altos. De aldeia em aldeia, só se viam saias sendo confeccionadas.

Esse ato de rebeldia não saiu barato para Mary McGolnagh. Perseguida e quase condenada às barbáries da inquisição, exilou-se nas terras que hoje compõem a Irlanda do Norte, morrendo alguns anos depois, longe de sua família.

O legado de Mary McGolnagh não se deteve à confecção de uma vestimenta que se tornou símbolo de um país. Foi a partir da Revolta das Saias que se deu início à uma série de revoluções que culminaram com a independência da Escócia, conquistada em 1306. Claro que o nome de Mary McGolnagh foi renegado à história do país e homens como William Wallace e Robert de Bruce aparecem nos livros.

A família de Mary McGolnagh resistiu às investidas políticas e o tear foi comandado por suas gerações seguintes. Alguns membros deixaram a Escócia, seguindo para cidades da Inglaterra ou da Irlanda.

Talvez você não tenha percebido a influência dessa mulher até então desconhecida. Cerca de 600 anos depois, um de seus descentes, Thomas Burberry, fundou uma das marcas de moda mais clássicas do mundo.

Caro leitor, se você chegou até aqui e se deu ao trabalho de fazer uma busca na internet sobre a história acima, não encontrará nenhuma referência a Mary McGolnagh e à sua relação com a independência da Escócia. Provavelmente porque essa mulher nunca existiu. Eu inventei nome dela e toda a sua trajetória de vida. A Revolta das Saias também não aconteceu. Não na Escócia; existiu uma no Ceará liderada por estudantes mulheres durante a ditadura militar.

Escrevi esse texto para mostrar que a criatividade humana não conseguirá ser suplantada pelos recursos de inteligência artificial. Como humanos, devemos lutar contra isso. E como pesquisadora da área de criatividade, devo lutar ainda mais, além de incentivar colegas a fazerem o mesmo.

Tive o trabalho de enviar um comando a uma conhecida ferramenta de IA, solicitando a criação de um fato histórico liderado por uma mulher sobre a independência da Escócia. O texto apresentado deixou claro que se tratava de um algo fictício. Foi capaz de criar um personagem, mas não uma história completa e rica em detalhes.

Talvez, com o aperfeiçoamento dos bancos de dados, a IA se torne mais detalhista. Mas isso depende da nossa capacidade (humana) de alimentar esse banco de dados.

Faço parte da geração de millenials, a última a não conviver com a presença da internet, com a hiperconectividade, com a ansiedade das respostas imediatas. Por isso, para pessoas como eu, muitas ações feitas por uma IA parecem saídas de um filme de ficção cientifica que assistíamos à tarde, na volta da escola, na única TV de tubo da casa, onde os canais eram trocados em um botão que girava.

O impacto que a IA já aplica às profissões que exigem criatividade como commodity não devia ser aceitável. Já é possível escrever textos jornalísticos a partir de uma IA. O mundo ao audiovisual talvez seja o mais afetado, com as ferramentas duelando com profissionais na criação de roteiros e imagens.

Isso sem se falar nos impactos sociais e políticos que já vemos. IAs reproduzem rostos e vozes, atribuindo a políticos ou quaisquer outras personalidades discursos que eles jamais profeririam, ampliando a corrente de desinformação que assola todo o mundo.

Neste mês de junho, o Congresso Nacional debate a criação de um Marco Legal para a regulamentação das IAs. No Brasil, não se chega ao consenso sobre a regulamentação das redes sociais digitais. Não se tem - ainda - limites sobre o conteúdo de postagens, que são analisadas apenas depois que estão no ar e já foram reproduzidas, compartilhadas e pulverizadas, judicializando muitos casos.

O debate junto aos governantes, deputados, senadores, entidades tecnológicas e sociedade civil é mais do que necessário e urgente, sob risco de, em um futuro não muito distante, não conseguirmos mais distinguir o que é um prompt e o que é a nossa própria realidade.

Mariana Araújo, jornalista e mestre em Indústrias Criativas

 

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