A Editora Record acaba de lançar o livro O Prefeito Escritor, contendo os relatórios de Graciliano Ramos, quando prefeito de Palmeira dos Índios de 1927 a 1930, endereçados ao Conselho Municipal e ao Governador de Alagoas. Nessa época, ele ainda não publicara seu primeiro romance, Caetés. Estando aberta a temporada de eleição dos alcaides, a obra é muito oportuna, extraindo-se dos inventários burocráticos a verve literária já então presente no grande escritor, para além de lições de ética, zelo com a coisa pública e incomparável sarcasmo com a lide política.
O Presidente Lula, que assina o prefácio do livro, pinçou alguns trechos bem interessantes: Sobre o cemitério: Pensei em construir um novo cemitério, pois o que vemos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam. Sobre a iluminação: A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá. Sobre a cobrança de impostos: Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores.
Outros trechos merecem destaque: Sobre obras e compadrios: Nada tenho despendido com estradas, obras públicas e instrução, porque tenciono empregar nelas o que sobrar dos gastos ordinários e quero evitar serviços que, por falta de numerário, possam vir a ser interrompidos. Consegui salvar em setenta dias 9:539$447. É pouco. Entretanto fiz esforço imenso para acumular soma tão magra, para impedir que ela escorregasse de cá: suprimi despesas e descontentei bons amigos e compadres que me fizeram pedidos. Sobre a desorganização da administração: Para que semelhante anomalia desparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro. Sobre gastos desnecessários com publicidade: Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela – um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1556 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés. Sobre as reclamações de um e de outro: Durante meses mataram-me o bicho do ouvido com reclamações de toda ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros – outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem. Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo.
Não tenho esperanças de elegermos prefeitos literatos, mas seria bom que eles se preocupassem em dar satisfação de seus atos com mais esmero, e pudessem governar sem gastos em publicidade, sem favores a amigos e compadres, com tenacidade para organizar a administração e um olhar de respeito aos cidadãos ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados, que, afinal, somos todos nós diante da máquina pública. Somente isso já bastaria para lhe reservar o reconhecimento dos munícipes que reclamam, e um espaço de galhardia na posteridade, placidamente colocado entre os munícipes que não reclamam. Graciliano ganhou o seu com a obra literária, merecendo agora também a glória no panteão político, embora, por certo, não a quisesse, e talvez desprezasse.
João Humberto Martorelli, advogado