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Recife não aceita mais agressores de mulheres

É certo que o lobby dos agressores que mantêm ou visam a firmar contratos com o Município do Recife sentiu os efeitos negativos da Lei

Publicado em 15/03/2025 às 21:00
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No dia 11 de março, foi aprovada em segunda votação, por unanimidade na Câmara Municipal do Recife, um Projeto de Lei que estabelece três esferas de punição administrativa contra agressores de mulher: a proibição de ser contratado pelo Município, a proibição de ser contemplado por benefícios fiscais e creditícios e a multa administrativa que, de acordo com a capacidade econômica do réu, varia de mil a um milhão de reais.

Como autora do Projeto, fui surpreendida por um artigo - escrito por uma advogada "mulher e feminista” - que sugere que o Projeto de Lei é confuso, demonstrando que a autora do artigo fez uma leitura superficial e açodada da Lei.

É certo que o lobby dos agressores que mantêm ou visam a firmar contratos com o Município do Recife sentiu os efeitos negativos da Lei. E é exatamente esse o propósito do projeto: fazer com que os agressores de mulher saibam que a sociedade não lhes concede mais lugar de honra à mesa, que são párias da sociedade e que a violência contra a mulher não será mais tolerada.

Respondo às dúvidas que a autora do artigo levanta:

A quem, no executivo municipal, caberia a competência de fazer tal julgamento, uma vez que o delito terá sido de cunho penal e não administrativo?

Ora, uma leitura atenta do Projeto de Lei explicaria a questão. Obviamente é necessária a prévia condenação penal ou cível, de acordo com a natureza da violência praticada contra a mulher e da reparação buscada pela vítima, para que seja cabível a punição administrativa. Assim, não cabe ao Executivo - mas sim ao Judiciário - o julgamento do agressor.

Seria de se esperar que os canais de denúncia de violência contra a mulher reportassem ao poder público municipal a existência de queixas para que o agressor possa ser identificado como tal?

Como é sabido, leis não devem descer a minúcias legislativas, recomendando-se que deixem ao escrutínio do gestor a sua regulamentação, formulando políticas públicas que se adequem aos preceitos ideológicos da gestão. Assim, caberá ao Executivo regulamentar a lei. A nós, legisladores, cabe indicar - e eu, como vereadora certamente farei a indicação - que seja firmado um convênio interinstitucional entre Município do Recife e Tribunal de Justiça de Pernambuco, criando um banco de agressores de mulheres, a fim de que a informação sobre as condenações judiciais transitadas em julgado sejam imediatamente comunicadas ao Executivo municipal. Nada, porém, impede que sejam criados canais de denúncia da própria Prefeitura, recebendo diretamente das vítimas essa comunicação, para que seja instaurado o processo administrativo. Essa deverá ser uma escolha do Prefeito e da Secretaria da Mulher do Recife.

A multa seria aplicada apenas depois de a denúncia ter sido acolhida e julgada na vara criminal?

Apenas depois de transitada a decisão judicial, cível ou criminal, cujo fundamento seja a violência, de qualquer natureza - psicológica, moral, patrimonial ou física - contra a mulher.

Como poderia o administrativo deliberar antecipadamente sobre uma matéria cuja culpabilidade ou inocência do acusado é de decisão exclusiva da vara que julga tais casos?

Não pode e não poderia. Uma leitura atenta da lei teria respondido a essa indagação.

Constitucionalidade

A autora do artigo crítico ainda sugere a inconstitucionalidade da “proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos, contados do trânsito em julgado da decisão administrativa”.

Alega, num ‘duplo twist carpado hermenêutico’, que a proibição iria se contrapor ao princípio da intranscendência da pena.

Não há, contudo, qualquer contraposição ao princípio da intranscendência da pena, uma vez que a proposta legislativa em questão não dispõe sobre a imposição de sanção penal diversa. Ressalte-se que referido princípio constitui fundamento do direito penal, não sendo aplicável à hipótese em análise, que não estabelece qualquer comando normativo que possibilite a condenação penal de pessoa jurídica, limitando-se, tão-somente, à restrição temporária de sua capacidade de contratar. Ademais, a própria Constituição Federal prevê situações em que esse princípio pode ser relativizado, conforme dispõe o artigo 5º, inciso XLV, ao estabelecer que “a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens poderão ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.”

Repúdio firme à violência contra a mulher

A autora da crítica finaliza apontando caminhos para o fim da violência contra a mulher, todos eles flácidos, pouco objetivos e sem nenhuma propositividade, lembrando a frase clássica dos concursos de Miss: "O meu desejo é a paz mundial".

Não é com leis flácidas que vamos enfrentar a violência contra a mulher. Pernambuco está entre os nove estados observados pela Rede de Observatórios da Segurança, que aponta uma média de 13 mulheres vítimas de violência a cada 24 horas. Os dados revelam ainda que em cada 17 horas uma mulher é vítima de feminicídio. No nosso estado o número de casos de feminicídio teve um aumento de 100% nos primeiros meses de 2025, segundo balanço divulgado pela Secretaria de Defesa Social (SDS).

Precisamos de leis firmes, capazes de provocar uma legítima mudança na cultura que naturaliza e banaliza a crueldade contra as mulheres. Nossa lei tem esse propósito. E a despeito do lobby dos agressores de mulheres, ela vai cumpri-lo.

Liana Cirne, professora de Direto da UFPE e vereadora do Recife.

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