Qualquer cidadão sabe, na prática, o que é o déficit primário que domina o debate político, envolvendo os possíveis resultados da reforma tributária e as projeções de investimentos e gastos orçamentários. O déficit primário, no jargão econômico, é a definição da diferença entre a despesa e a receita, retirados os juros da gigantesca dívida pública brasileira. O déficit é como uma extensão do cheque especial do governo, que não paga a dívida do ano anterior, e entra num novo ano projetando uma dívida menor, na melhor das hipóteses. Para mudar o discurso e buscar a transformação do ciclo de endividamento, o ministro Fernando Haddad trouxe ao novo governo Lula a proposta de substituição do teto de gastos por um arcabouço fiscal que seria sustentado pela elevação de receitas, a tal ponto que garantiria, já em 2024, o déficit zero – ou seja, o equilíbrio entre arrecadação e despesa, fazendo com que o governo federal nem precisasse de cheque especial.
De janeiro a setembro, o déficit primário nacional foi de quase R$ 97 bilhões, num rombo ainda mais notável ao se comparar com o superávit alcançado no mesmo período no ano passado, onde as contas estavam positivas em R$ 126 bilhões – isto é, em relação a 2022, a diferença é de R$ 223 bilhões. Na lente das esferas governamentais, o governo federal apresentou déficit de R$ 117 bilhões nos primeiros nove meses de 2023. Enquanto isso, estados e municípios conseguiram um saldo superavitário de R$ 22,5 bilhões, e as empresas estatais também ficaram no vermelho em pouco mais de R$ 2 bilhões. Se dependesse apenas do governo Lula, portanto, a situação estaria pior.
Vale recordar que, em dezembro do ano passado, após a vitória eleitoral, o então futuro governo federal recebeu do Congresso o equivalente a um aumento do cheque especial, sendo autorizado a gastar quase R$ 169 bi a mais, fora do orçamento previsto para este ano. Foi a PEC da transição, considerada crucial para a continuidade de programas sociais e o cumprimento de compromissos de campanha, no início do mandato. O resultado deficitário das contas nos primeiros nove meses do ano não é surpresa, uma vez que já se partiu da premissa do endividamento. Mas sua confirmação revela o grau de dificuldade para a equipe econômica manter o plano de zerar o déficit em 2024, especialmente depois de o presidente da República demonstrar dúvida quanto à viabilidade da proposta. O déficit do ano que vem, perante a realidade da economia – e da deseconomia do Planalto – não tem como ser sonhado como nulo.
Com aplicação do realismo e a conquista de considerável redução do déficit no ano que vem, se tomado o rombo de 2023, a perspectiva de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) representaria um buraco, ainda assim, de mais R$ 50 bi em 2024. Como os governos tendem a gastar mais na segunda metade dos mandatos, é difícil acreditar que o país entre no rumo do equilíbrio fiscal tão cedo.