O cansaço venceu o medo. A derrota do candidato governista, Sergio Massa, representante do peronismo que há muitos anos faz girar o populismo na Argentina, tem suscitado variadas interpretações. A mais clara parece a fadiga do eleitorado, diante da economia em colapso e da recorrente corrupção alojada nas entranhas do poder por sucessivos governos peronistas. A margem da vitória de Javier Milei, apresentado como ultraliberal ou anarcoliberal – seja lá o que isso signifique – implica em robusto capital eleitoral, espalhado quase uniformemente por todo o país. Mas apesar da conquista, o futuro presidente não poderá desprezar a política tradicional, uma vez que não conta com maioria parlamentar, tendo que buscar a costura de apoios necessários para as reformas que desejar levar da campanha para a realidade.
No discurso após o resultado oficial, o presidente eleito dos argentinos falou em reconstrução, amenizando o tom adotado na campanha, como já vinha fazendo no segundo turno. Foi o suficiente para receber apoios que podem ter sido decisivos para a larga vitória, como do ex-presidente Mauricio Macri. Propagandas alardeadas como a extinção do Banco Central e a dolarização da economia tendem a ser abafadas para o aprofundamento de estudos de viabilização. Por outro lado, o novo ocupante da Casa Rosada já avisou que mantém a intenção de privatizar estatais de petróleo e de comunicação. Somente o tempo dirá a distância entre o candidato de caricatura e o presidente que tomará posse em menos de um mês, em dezembro.
A moderação do candidato antisistema é esperada, porque agora todo discurso não pode afastar o fato de que Milei será parte do sistema, e dependerá das instituições para fazer as mudanças que enumera, com promessas tão ou mais populistas que os antecessores. A principal diferença é que sai o Estado provedor e entre o mercado redentor, num rodízio de extremos que ronda a Argentina e outros países do mundo. Se transferir o candidato para a cadeira presidencial, Javier Milei corre o risco de perder rapidamente as condições de governabilidade e a credibilidade da eleição. Por outro lado, o voto de protesto que o alçou ao poder aguarda novidades no comportamento político. No equilíbrio de expectativas, inclusive nas relações internacionais, o futuro governo da Argentina tem um imenso desafio pela frente, com a economia em frangalhos, e as ruínas do que se considera a maior derrota peronista reconfigurando a cena política.
Para o Brasil, que guarda com os argentinos fortes laços culturais e comerciais, a eleição de Milei deve ser vista com pragmatismo e naturalidade, dentro da normalidade democrática e com a mesma disposição de apoio que deve ser ofertada em qualquer governo. O Itamaraty já deu essa mostra. O Palácio do Planalto também, apesar da nítida decepção com o desempenho peronista. Os hermanos precisam dos brasileiros, e o afeto e as trocas entre os dois povos estão acima das variações – mesmo radicalizadas – no exercício do poder.