Apesar dos preconceitos, mulheres mostram que sabem apreciar e produzir cervejas de alta qualidade

No Dia Internacional da Cerveja, conheça mulheres que atuam no cenário cervejeiro de Pernambuco
Vanessa Moura
Publicado em 07/08/2020 às 15:15
Chiara, fundadora e sócia do Ceres Foto: Divulgação


A primeira sexta-feira do mês de agosto sempre têm gostinho de cerveja. Isso porque, desde 2007, mais de 50 países, incluindo o Brasil, celebram na data o Dia Mundial desta, que é uma das bebidas mais populares do mundo. E, contrariando estigmas, há bastante tempo a cena cervejeira têm contado com a presença ativa das mulheres. Além de apreciarem a bebida, elas também estão diretamente ligadas ao seu processo mercadológico.

De acordo com a história, as mulheres já produziam cervejas há quatro mil anos a.C. Enquanto os homens saíam para caçar, as mulheres, que eram responsáveis pelos grãos, descobriram que alguns deles, ao serem expostos à chuva e sol, resultavam num líquido alcoólico. No entanto, a partir da Revolução Industrial, quando a bebida passou a ser fabricada em larga escala, o processo foi assumido pelos homens. Em outubro de 2019, o primeiro Senso das Cervejarias Independentes Brasileiras apontou que cerca de 89% do setor, no Brasil, ainda é representado por homens. Apesar disso, as mulheres seguem buscando ocupar novamente esse espaço, lutando para torná-lo mais igualitário. 

De acordo com Vanessa Nobre, presidente da Associação dos Cervejeiros Artesanais de Pernambuco (ACervA-PE), as mulheres enfrentam duros obstáculos no segmento cervejeiro. "É notório que o mercado é um monopólio masculino. Tem mudado aos poucos, a gente já consegue ver mais mulheres inseridas em produções nas cervejarias, mas elas sempre precisam provar que são boas o suficiente para estarem naquele cargo. E ao primeiro deslize o peso por ser mulher é sempre maior", contou à reportagem do JC

Quando se trata de consumo, Vanessa revelou que o preconceito com a mulher também é assustador. "Sempre escutamos comentários do tipo “cerveja de mulher”, quando falam de um estilo mais leve ou mais adocicado. Puro preconceito... Consumimos e gostamos de cervejas igual aos homens. Ou até mais. Somos mais minuciosas e temos a tendência de procurar mais qualidade, talvez por isso o mercado de cerveja artesanal tenha crescido muito entre as mulheres", disse. 

Para ela, a cerveja sempre foi além da simples degustação. "A cerveja sempre foi sinônimo de reunir os amigos. Eu dizia que gostava mais da cerveja pelo 'manifesto social' que surgia ao redor dela do que pelo gosto em si", revelou. Com o passar do tempo, o hábito de consumir a cerveja foi dando lugar à curiosidade e Vanessa passou a estudar mais sobre o assunto, até, enfim, produzir a sua primeira cerveja artesanal. "Vi que tinha como fazer cerveja em casa, procurei um curso, me matriculei e em um mês estava fazendo minha própria cerveja. Cerca de 20 dias depois ela estava na minha mão e foi a melhor cerveja que já tomei, é um orgulho feito mãe com um filho", contou Vanessa em tom de risada. 

Pioneiras

Apesar do desafio em encontrar espaço num segmento tão masculinizado, três mulheres ultrapassaram barreiras e se tornaram pioneiras no ensino especializado de cervejas artesanais do Nordeste. A partir do desejo em compartilhar a paixão pela cerveja, Chiara Rêgo Barros, Patrícia Sanches e Julyana Alecrim fundaram o Instituto Ceres de Educação Cervejeira em Pernambuco.

"Eu já era cervejeira há 12 anos. Tinha trabalhado 11 anos na indústria e nessa época fazia consultoria e ministrava cursos de cerveja, inclusive no Senai. Um pouco antes tinha conhecido Patrícia Sanches e Julyana Alecrim. Nas nossas conversas sobre formação, sentíamos uma inquietação pelo nordeste não ter nenhum centro de formação focado em cerveja. Foi quando surgiu a ideia de montar uma escola em Pernambuco, o Instituto Ceres de Educação e Consultoria cervejeira", revelou Chiara Rêgo Barros, uma das fundadoras do Instituto.

O espaço, que foi intitulado em homenagem à deusa grega Ceres, oferece cursos que abrangem desde a teoria do universo cervejeiro até a própria produção da bebida, na cozinha de casa.

"O nome 'cerveja' vem de Cerevisiae, que significa: aos olhos de Ceres. Ceres é a Deusa da agricultura e dos grãos, da fertilidade, do desenvolvimento. Não tinha melhor nome!", contou. "Ter uma escola no Nordeste facilita o desenvolvimento das pessoas e fomenta o mercado cervejeiro. Hoje muitos alunos já passaram pelo instituto e cada vez mais vamos agregando pessoas na nossa comunidade", completou Chiara.

A recifense Mayara Britto, apreciadora nata de cerveja, é uma destas pessoas que foram encontradas pela Ceres. Em janeiro deste ano a consultora de seguros encontrou no Instituto a oportunidade de aprender mais sobre a bebida que tanto gosta. 

"Apesar de existir muito preconceito com relação à mulher nesta área, eu quis quebrar essas barreiras e decidi fazer. Foi muito interessante! A gente estudou a parte teórica e foi pra produção também. A gente entende o processo químico que acontece ali, desde quando você vai moer um grão até quando vai esperar pela fermentação ficar pronta. É muito massa. Você vê que a cerveja vai muito além de mitos e preconceitos", contou. 

Segundo Mayara, aprender os processos necessários para produção da cerveja foi especial. Afinal, para ela, o gosto da cerveja remete aos bons momentos ao lado dos amigos e aquece o coração. "Eu sei que a cerveja pode proporcionar experiências ao meu paladar e acredito também que uma mesa com pessoas tomando uma boa cerveja, de forma saudável, é uma ótima forma de confraternizar e juntar as pessoas", revelou. 

Embora o curso, formado por mulheres, tenha elucidado tantas questões teóricas e técnicas para Mayara, a formação também despertou nela uma inquietação: Por que a presença feminina é tão pequena neste segmento?

"Quando eu vou para degustações e tem representantes das marcas, é tudo homem, eu não vejo mulher. Antes eu ficava me perguntando 'é porque elas não conhecem e não sabem?', mas eu entendi que não é isso. Quando eu fiz o curso eu vi que as mulheres sabem e sabem muito", completou. 

Para confirmar a fala de Mayara, não é necessário ir muito longe, basta observar o time de fundadoras do Ceres. Chiara é engenheira química, técnica cervejeira e beer sommelière. Além disso, trabalhou na Ambev, Brasil Kirin e tem vasta experiência como consultora de tantas outras cervejarias do País. Patrícia é técnica cervejeira, beer sommelière e fundadora da Cervejaria PattLou. E Julyana é cervejeira caseira, beer sommelière e integrante da diretoria da confraria de mulheres cervejeiras, Maria Bonita.

De acordo com Chiara, o que não falta são mulheres especializadas no mercado cervejeiro, o problema, na verdade, é a falta de oportunidades para muitas delas. "É incrível porque existem muitas mulheres cervejeiras profissionais. Eu, por exemplo, sou engenheira química e cervejeira de formação. Então não é só um hobbie, né? A gente estudou pra isso, mas infelizmente o mercado, por ter predominância masculina, é um meio muito machista ainda, e a gente não vê tantas mulheres de destaque na nossa região. Quando a gente começou [com a Ceres] não existiam tantos homens com formação na área de cerveja aqui em Pernambuco. Nós somos muito respeitadas aqui no nosso Estado, mas sabemos que não é bem assim com todas. De uma maneira geral as mulheres sofrem muito no mercado cervejeiro. É um processo de construção e de educação que a gente vêm fazendo já há muito tempo", falou.

No Recife, a Confraria Feminina Maria Bonita Beer reúne diversas mulheres cervejeiras do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do País. Além de promover degustações, concursos e palestras sobre o tema, o espaço também luta pela maior representatividade feminina no mercado cervejeiro e estimula outras mulheres a buscarem capacitação neste meio. 

Chiara acredita que o papel desenvolvido pela Confraria Maria Bonita seja de extrema importância para impulsionar o protagonismo feminino no cenário cervejeiro. "É um papel de incentivar as mulheres a estudar, a se aprofundar mais nesse universo cervejeiro. O trabalho que as meninas fazem aqui em Pernambuco é sensacional! A gente vê várias mulheres que não se sentem à vontade de sentar numa sala de aula pra estudar cerveja porque tem muitos homens ou de entrar num bar porque não se sente à vontade, e a confraria termina abrindo essas portas", disse. 

Em julho, o grupo redigiu um manifesto pacífico após não encontrar nenhuma palestra ministrada por mulher na programação do Congresso Técnico Internacional Agrária Malte, promovido pela maltaria Agrária Malta, uma das principais empresas do cenário cervejeiro nacional.

"Se ser mulher já tem seu fardo diante da visibilidade do mercado, imagina ser uma mulher cervejeira? Ou uma mulher cervejeira pesquisadora? Ou uma cervejeira de chão de fábrica? Não queremos cotas, queremos ser lembradas e reconhecidas. Não é possível que diante de profissionais incríveis que temos, não tem uma mulher que possa palestrar sobre conteúdo técnico num congresso tão importante quanto esse para o nosso país. Estamos falando sobre representatividade, sobre reconhecimento, sobre capacidades", diz um trecho do manifesto. 

Em resposta, a Agrária Malta desculpou-se pela situação e garantiu que um cenário como esse não se repetiria. "Nossa, valorizamos as mulheres cervejeiras. Temos muito carinho e respeito. Talvez seja inútil dizer que tudo isso foi uma grande e absurda coincidência. Mas foi! Trabalhamos muito mesmo na organização desse Congresso para que ninguém ficasse de fora. Para que fosse possível compartilhar esse momento com todas e com todos! Nas outras edições, haviam mulheres. Nesta, há mulheres nos bastidores, onde o trabalho não é menos importante, apenas não aparece para o público", escreveu em comentário no Instagram. 

De acordo com Chiara, a Agrária é uma empresa bastante engajada neste sentido de equidade de gênero e tem muitas mulheres em posições importantes, mas neste episódio da Conferência errou gravemente. "É um erro grave nos dias de hoje a gente não ter representatividade".

Para ela, a luta da mulher na cena cervejeira ainda têm muito chão para percorrer. Mas é justamente por isso que ela e tantas outras continuam trabalhando. Pelo direito de ocupar os lugares que quiser, seja na sala de aula, nos meios de produção ou na mesa do bar. "É um meio que ainda tá longe de ser igualitário. Não tem as mesmas oportunidades pra mulheres e nem pra outras minorias, mas é por isso que a gente briga bastante. A luta é constante e diária e isso é cansativo mas a gente não vai desistir", completou a cervejeira. 

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