Com redução de casos graves, profissionais de saúde se despedem do front nas unidades de combate à covid-19 do Recife

"O que ficou dentro de mim foi um turbilhão de emoções que o hospital de campanha cravou", descreveu a médica Juliana Erthal em um relato emocionante através de uma rede social
Vanessa Moura
Publicado em 18/08/2020 às 10:38
Do total de recuperados em Pernambuco, 25 mil são de moradores da cidade do Recife Foto: ANDRÉA RÊGO BARROS/PCR


Com 90 dias de redução de casos graves e óbitos no Recife, o maior hospital de campanha criado pela gestão municipal para o enfrentamento do novo coronavírus, o Hospital Provisório Recife 2 (HPR 2), começou o processo de desativação na última quarta-feira (12). Além deste, outros cinco hospitais de campanha erguidos na capital pernambucana tiveram leitos desativados. Sendo assim, ao passo que os casos graves diminuem, muitos profissionais da saúde que atuaram na linha de frente desta luta vão se despedindo de seus postos e levando consigo um misto de sentimentos que só quem passou pela experiência consegue descrever. 

Com os rostos marcados pelo cansaço e pela máscara cirúrgica e uma bagagem lotada de memórias constituídas pelos dias mais intensos de suas vidas, há um misto de dor pelo que passou, mas também de alívio por ter chegado até aqui com a certeza de dever cumprido. 

"As últimas altas assinadas de hoje, como todas as demais, me fizeram chorar. Dois homens adultos saudosos de seus lares e parentes... choraram. Abracei, me pediram para tirar foto e eu disse: sejam felizes! Me despedi do HPR [Hospital Provisório do Recife] assim" escreveu a médica Juliana Erthal, que atuou no combate à covid-19 em um dos hospitais de campanha do Recife. 

"O que ficou dentro de mim foi um turbilhão de emoções que o hospital de campanha cravou", descreveu Juliana em um relato emocionante através de uma rede social.  

O médico infectologista, Bruno Ishigami, de 29 anos, também despediu-se. Na última segunda-feira (17), Bruno foi pela última vez ao hospital de campanha no qual atuou por 104 difíceis dias. "Acredito que os momentos mais difíceis que vivi ali dentro foram quando precisava informar às famílias que estávamos pensando em definir cuidados paliativos para algum paciente. Ter essas conversas por telefone me cortavam o coração. Informar que uma pessoa está falecendo nunca é fácil e não foram poucas vezes que precisamos fazer isso durante uma pandemia", escreveu em uma publicação no Instagram. 

 
 
 
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104 dias depois de iniciar os trabalhos no hospital de campanha chega ao fim o ciclo mais louco e intenso nos meus 29 anos de vida. Em vários momentos me questionei se a medicina era a profissão que deveria seguir, isso aconteceu durante a graduação e durante a residência. Por mais estranho que pareça, acredito que só me encontrei dentro da medicina após vivenciar uma pandemia e todas as suas dores. Foram 259 pacientes que passaram pelo meu grupo, dos quais 22 partiram para outro plano ao longo dessa jornada. Não são apenas números, nunca serão e peço - de verdade - que não deixem que se transformem apenas em estatística. São pessoas com nomes, histórias de vida, planos que foram interrompidos. Foram dias cansativos psicologicamente e fisicamente, muitas horas trabalhadas dentro e fora do hospital, mas fico feliz que conseguimos fazer um trabalho em que o cuidado com o paciente e a preocupação em manter a família informada sempre esteve como prioridade. Fico realmente feliz em saber que a maior preocupação de todos era garantir que aqueles pacientes teriam dignidade durante todo momento. Acredito que os momentos mais difíceis que vivi ali dentro, era quando precisava informar às famílias que estávamos pensando em definir cuidados paliativos para algum paciente. Ter essas conversas por telefone me cortavam o coração. Informar que uma pessoa está falecendo nunca é fácil e não foram poucas vezes que precisamos fazer isso durante uma pandemia. Lembro de um momento em especial em que precisei informar para uma mãe que a filha de 40 anos estava falecendo. Foram alguns dias tendo essa conversa com uma mãe que chorava do outro lado da linha. Tenho certeza que todos nós não somos os mesmos de quando a pandemia iniciou. Como sairemos disso? Não sei, mas eu estou colecionando as minhas cicatrizes. Só tenho a agradecer aos companheiros que estiveram ao meu lado nessa jornada! “...uns poucos meses no campo me convenceram de que ser um bom médico nada tinha a ver com anatomia, cirurgia ou prescrição dos remédios certos. A melhor maneira de um médico ajudar seu paciente era ser ele próprio uma pessoa cheia de bondade, zelo, sensibilidade e amor” Elisabeth Kubler-Ross

Uma publicação compartilhada por Bruno Ishigami (@bruno.ishigami) em

Em conversa com a reportagem do Jornal do Commercio, Ishigami revelou que dos 259 pacientes encaminhados ao seu grupo na unidade de tratamento, 22 não resistiram à doença. "De certa forma, é normal para os profissionais de saúde terem algum contato com a morte, faz parte do nosso ofício. O que chama atenção é que durante a pandemia a quantidade de contatos é maior e a gravidade da doença fica explícita nesses óbitos", disse.

Dentre todos os momentos vividos no front, algumas conversas com os familiares dos pacientes fazem parte das memórias mais dolorosas guardadas por Bruno. 

"Durante a relação médico-paciente construímos uma relação mais "forte" com alguns pacientes, seja por identificação com alguma parte da história de vida ou pela emoção que isso desperta em mim. Acredito que dois casos me marcaram mais nessa jornada, os dois eram de pacientes jovens e o que fez com que essa história ficasse marcada em mim era a conversa com os familiares desses pacientes. Em um dos casos eu precisava conversar diariamente com a mãe da paciente e informar sobre o quadro clínico e o agravamento dia após dia; doía em mim ouvir ela chorando do outro lado da linha e perguntando coisas do tipo 'será que ela lembra de mim? ela perguntou por mim hoje?'" contou. 

Por estar trabalhando diretamente com casos graves da doença, o infectologista precisou afastar-se de boa parte da família. No entanto, pôde encontrar na parceira, que também é médica, um refúgio nos dias mais difíceis. "Minha companheira também é médica e trabalha em unidades que prestam atendimento a pacientes suspeitos ou confirmados da COVID-19. O fato de estar com ela durante todo o momento, tornou a jornada um pouco mais leve e era um porto seguro pra botar pra fora as histórias que mais mexiam", contou.

No enfrentamento da pandemia, Bruno, junto com outras três médicas, realizava a avaliação diária dos pacientes que estivessem sob a tutela do grupo. Diariamente os quatro examinavam e conversavam com os pacientes para que pudessem compreender a evolução dos casos. Além disso, era deles a responsabilidade de manter os familiares por dentro do estado de saúde de seus entes queridos. "Éramos eu e mais três médicas, Lucia, Yana e Amanda. Elas ficavam responsáveis pelo maior cuidado com os pacientes e eu auxiliava na condução dos casos mais complicados, ajudava a resolver as burocracias que surgissem e ligava pra a maior parte das famílias" explicou.

Para ele, apesar dos maus momentos, a jornada no hospital de campanha também representou a certeza de que a medicina também significa carinho e afeto. "A parte mais feliz era ver o esforço das três em usar o telefone pessoal delas para garantir que os pacientes que não possuíam celular conseguissem falar com a família. Esse afeto e cuidado é o que mais me marcou durante todo o processo", revelou. "As mortes fazem parte do ofício e causam impacto, mas presenciar essa sensibilidade e afeto me transformaram e me marcaram muito mais", completou o médico.

Assim como Bruno, a enfermeira Amanda Canto, que também trabalhou nos hospitais de campanha do Recife, despede-se do front. Com apenas um ano de atuação na área, Amanda nunca imaginou que viveria uma pandemia. "Nunca na vida eu cogitei a possibilidade de viver momentos como estes. Foi muito impactante. O que mais me marcou foi ver tantas vidas jovens indo embora mesmo a gente lá do lado fazendo de tudo pra salvá-las", contou.

Mesmo com medos, dúvidas e preocupações, a profissional afastou-se da família e dedicou-se aos seus pacientes. Olhando pra trás, a jovem enfermeira sente orgulho de cada situação que precisou enfrentar durante os últimos cinco meses. Agora, o sentimento que prevalece é o de gratidão. "A sensação que sinto é de dever cumprido por ter participado ativamente na melhora e evolução dos pacientes, e também sinto alívio por saber que os casos vêm diminuindo. É bom saber que estamos vencendo essa luta diária", revelou. 

Leitos

Dos 1.155 leitos criados pela gestão municipal para o tratamento do novo coronavírus, Recife permanece apenas com 505 em funcionamento - 268 de UTI e 237 de enfermaria. Deste número total, apenas 233 estão ocupados. 

Além dos leitos que serão desativados no HPR2, foram desativados leitos nos hospitais construídos nas áreas externas do Hospital da Mulher do Recife, e das Policlínicas Barros Lima, Amaury Coutinho e Arnaldo Marques. No Hospital da Mulher e nas policlínicas, as estruturas provisórias erguidas nas áreas externas das unidades foram removidas, mas todas permanecem com leitos de covid-19 nas áreas internas.

Além do município ter registrado uma queda no número de pacientes internados, de óbitos e de casos graves, a Secretaria de Saúde do Recife também registrou queda de 60% no número de atendimentos nas emergências das policlínicas.

Casos

De acordo com boletim atualizado e publicado pela Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE), Pernambuco registrou 225 novos casos de coronavírus e 22 óbitos nas últimas 24 horas. Com isso, o Estado totaliza 113.183 casos da doença e 7.210 mortes. 

Só no Recife estão 29.718 e 2.220 dos casos e mortes confirmados, respectivamente. 


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