CRIME

O pedido de socorro de quem teme ser a próxima trans assassinada em Pernambuco

Sequência de mortes de travestis desperta medo na comunidade LGBTQIA+. Mulher vai entrar na Justiça com pedido de morte assistida

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Katarina Moraes

Publicado em 11/07/2021 às 8:00
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Paz. Para a travesti e enfermeira Fernanda Falcão, de 28 anos, essa palavra sempre foi muito cara. Não se reconhecer como homem e decidir se tornar mulher para a sociedade era um pacto de fidelidade consigo mesma, mas também significava que ela estaria entrando no grupo composto pelas pessoas mais vulneráveis do estado. Por mais que tenha lutado pelo direito à vida todos os dias, dentro dela predomina a certeza de que será mais uma transexual na estatística das tantas brutalmente assassinadas em Pernambuco - pelo menos quatro em menos de um mês.

Com medo de ter o rosto estampado nas manchetes de jornalismo policial, ela contou na última semana ao JC que entraria com um pedido na justiça por uma morte assistida. A reunião com um advogado da Defensoria Pública da União (DPU) no Recife estava marcada para a segunda quinzena de agosto; entretanto, uma tentativa de homicídio contra Fernanda dentro de sua própria casa, na cidade de Paulista, Região Metropolitana do Recife, nessa sexta-feira (9), fez com que o encontro fosse antecipado.

“Quatro homens chegaram em duas motos. Um deles subiu a minha escada com a arma na mão e chutou minha porta, que não cedeu. O pessoal da minha rua veio intervir por mim, e ele desceu correndo e foi embora. Passei a noite toda na delegacia, onde fiz corpo de delito e prestei queixa, e consegui apoio de uma entidade, que me acolheu e me colocou em um lugar seguro. Estou escondida. Eu acredito que tenha sido uma represália porque não tenho problema com ninguém, nem desavença com ninguém; sou muito bem quista na minha comunidade”, relata.

O episódio fez com que ela “mais do que nunca” estivesse decidida a escolher morrer, em "paz". “É um pedido para que me seja dada uma medicação para que eu possa não morrer com dor. É pelo sentimento e pela certeza de que vou ter uma morte brusca. A certeza que minha mãe vai poder ver meu corpo pelo menos limpo, em um caixão, para que eu não dê o desgosto da minha família me pegar no meio do mato, no meio da rua, toda esfaqueada. É para ter dignidade pelo menos nesse momento”, desabafa.

Fernanda é, hoje, a voz de muitas mulheres trans do Estado. Consultora do Conselho Estadual de Direitos Humanos, do Comitê Estadual de Prevenção ao Tráfico de Pessoas e do Mecanismo Estadual de Combate à Tortura. Coordenadora da Rede Nacional de Travestis e Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV. Atuante no Projeto Mercador de Ilusões, que auxilia profissionais do sexo. Mesmo assim, todo o seu privilégio e estudo nunca foi capaz de garantir a sua segurança.

Aos 15 anos, quando decidiu se assumir como mulher para a família, foi expulsa de casa: “minha mãe disse que era coisa do demônio”. “Depois, a escola, onde eu já sofria bullying, me deslegitimou totalmente, não deixava nem eu ir ao banheiro. “Tornar-me mulher foi algo que me deixou feliz, porque entendi minha identidade e que eu poderia existir, mas também me tirou todas as oportunidades possíveis”, relatou. Hoje, conta que sua família são os amigos que fez.

Em 2017, quando trabalhou na Secretaria de Justiça do Governo de Pernambuco, também foi vítima de uma tentativa de homicídio. “Deram um tiro de pistola .40 na caixa do meu peito, porque disseram que não iam receber ordem de “frango preto”. Ao WhatsApp desta repórter, Fernanda enviou uma foto do ferimento com a legenda “não quero mais isso”.

Kalyndra Selva, Fabiana da Silva, Crismilly Pérola e Roberta Nascimento são os nomes das travestis de Pernambuco que agora integram agora a terrível estatística que torna o Brasil o país que mais mata pessoas transexuais do mundo, segundo dossiê elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Só em 2020, pelo menos 175 mulheres transexuais haviam sido assassinadas - uma alta de 41% em relação ao ano anterior. Por ser feito por meio de notícias veiculadas pela mídia, o ranking ainda apresenta subnotificação - ou seja, acredita-se que o número seja ainda maior.

Em entrevista à Rádio Jornal na última quinta-feira (8), a pesquisadora do Observatório da Violência de Pernambuco, Dália Celeste, havia alertado para como as mortes de mulheres trans costumam ter requintes de crueldade. "O crime de transfobia é praticado sempre com grandes requintes de crueldade. Não basta matar [na cabeça dos agressores]. São inúmeras facadas, estrangulamentos, no caso da Roberta, ela foi queimada viva”, disse Dália.

Em Pernambuco, a Secretaria de Defesa Social (SDS) registrou que 13 cidadãos que se identificam como LGBTQIA+ foram vítimas de Crime Violento Letal Intencional (CVLI) até maio de 2021 - ou seja, nenhuma das últimas mortes foram inseridas no boletim, ainda. Outras 1.106 ocorrências de violência contra a comunidade também aconteceram neste ano, o que inclui crimes como lesão corporal, maus-tratos, estupro, difamação, calúnia, racismo e injúria racial. Em 2020, os mesmos indicativos foram de 47 e 2.113, respectivamente.

O próximo levantamento da SDS também contará com a ocorrência da funcionária pública Raphaella Ribeiro, de 29 anos, contra um pastor da cidade de Igarassu, na RMR, onde mora, que, segundo ela, vem perseguindo-a. Em vídeos publicados nas redes sociais, o religioso a chama de “feiticeiro” e de “bruxo”, e diz que ela estava transformando a prefeitura em um “terreiro de macumba”, por praticar religião de matriz africana.

“Desde que ele me discriminou no Instagram, minha vida nunca mais foi a mesma, porque tenho receio de trabalhar, fico com medo. Já foi prestado um boletim de ocorrência contra ele, e estou tentando também entrar com uma ação judicial. Vai ser feito um encontro para reflexão coletiva na Câmara dos Vereadores para que eles (parlamentares) saibam de tudo que está acontecendo no município, e para que a gente consiga fazer mais políticas públicas para esta população”, revela.

Quando era adolescente, Raphaella começou a prestar serviços sexuais para sobreviver e peregrinou por diversas cidades. Ao saber que a mãe estava doente, voltou para Igarassu, e conheceu seu atual esposo, com quem vive há 10 anos. Então, resolveu largar o posto e começou a se engajar na política pública. Seu primeiro cargo foi em um projeto curiosamente chamado “Vida Nova”, onde dava aulas de dança popular para crianças e adolescentes. Mais tarde, assumiu a Secretaria da Mulher do município, onde pôde atuar na mudança de nome de diversas transexuais.

Mesmo com essa rede de apoio, ela também pediu à repórter: “me ajude, não me deixe sozinha, tenho medo de ser exterminada como minhas companheiras vêm sendo”. “Esses casos parecem uma quadrilha de extermínio à nossa população. O que aconteceu com Roberta, pode acontecer comigo. Por isso estou desesperada. Nesses dias, não consigo dormir, fico com medo na rua, é uma situação muito delicada que nunca imaginei que poderia acontecer. Somos seres humanos, não existe ninguém melhor do que ninguém”, defende.

Para a especialista Dália Celeste, que também é uma mulher trans, a mudança de consciência coletiva para respeito da comunidade LGBTQIA+ precisa começar de cedo. “Nós precisamos educar as crianças porque elas estão sendo ensinadas dentro dessa lógica de preconceito que trans não devem ter dignidade. [O homem que mata uma trans] ele mata porque ele não sabe lidar com o corpo que desde a infância foi ensinado a ele que é errado."

Ações

Na quarta-feira, o Governo de Pernambuco anunciou a criação do Comitê de Prevenção e Enfrentamento às Violências LGBTfóbica. Cinco secretarias estaduais serão responsáveis por construir políticas públicas transversais para população LGBTQIA+.

"O governo de Pernambuco, através da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ), tem tratado sobre os anseios e exigências do movimento LGBTQIA+ que atuam em Pernambuco, diretamente com seus representantes e, no momento, aguarda documento final sobre as recomendações a serem encaminhadas para o governador Paulo Câmara", afirmou a nota enviada pelo Executivo.

Nas redes sociais, o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), afirmou ter determinado à Polícia Civil "todo o rigor na apuração da morte de Pérola para que os culpados não fiquem impunes". Além dela, ele também citou os casos de Roberta e de Fabiana.

"Infelizmente, vivemos tempos em que identidade de gênero, religião, ideologia política e raça têm sido usadas como justificativa para crimes de ódio. Não vamos tolerar isso em Pernambuco. Nosso compromisso é com uma sociedade pacífica, plural e democrática", afirmou o chefe do Executivo estadual. Ele também citou outros dois casos recentes de violência também contra mulheres trans. "Os acusados da agressão a Roberta e do assassinato de Fabiana estão presos, aguardando julgamento", declarou Câmara.

Um dia após Roberta ter sido queimada viva, o prefeito do Recife, João Campos (PSB), repudiou a ação. Nas redes sociais, João informou que a Secretaria de Desenvolvimento Social vai fazer o acompanhamento e dar a assistência necessária à vítima. "O que aconteceu é intolerável, atinge a todos e todas nós, comprometidos com a causa dos direitos humanos e do enfrentamento a qualquer tipo de violência e preconceito. Determinei à nossa Secretaria de Desenvolvimento Social que seja feito o acompanhamento e dada a assistência necessária à mulher trans vítima de queimaduras, na última madrugada, no Cais de Santa Rita", afirmou.

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