Vinte e oito de maio de 2022. A partir dessa data, a Comunidade de Jardim Monte Verde virou o lugar do “era”. Afinal, só do morro que divide o Recife de Jaboatão dos Guararapes, se foram pelo menos 20 vidas até agora, arrastadas por deslizamentos de barreiras que engoliram casas durante as chuvas em diferentes pontos. O que não passa do número de vítimas para o resto do País, está, ali, na representação de um amigo, de um parente ou de um grande amor que não retornará.
Por isso, os lamentos são um som constante nas ruas, que viraram um velório a céu aberto um dia após as tragédias. “Aquele Vandeck morreu, não foi?”, perguntou uma das mulheres pela rua. “Tira Ketlin e o casal que está ali, meu Deus”, disse outra, clamando, com as mãos direcionadas à barreira. “As pessoas que me viram crescer foram engolidas pela terra”, verbalizou mais uma, refletindo sozinha, com olhos marejados.
Em meio ao luto generalizado, continua uma operação de guerra na região. A subida até o morro foi parcialmente interditada para que os caminhões que vão e vêm carregando os entulhos de residências destruídas tenham a passagem liberada. Policiais, Bombeiros e órgãos de trânsito circulam a todo momento. Tratores retiram o excesso da lama, e helicópteros sobrevoam a área.
Sem efetivo suficiente do Corpo de Bombeiros ou da Defesa Civil para buscar pelos desaparecidos, agentes de limpeza, guardas municipais e os próprios moradores ajudam no trabalho, que acontece sem coordenação e sob risco da terra voltar a cair. “Achamos mais um”, gritou alguém, ao encontrar outro corpo em um dos pontos de desabamento.
Nessa hora, a gerente Ana Cláudia Costa, 35, que acompanhava as buscas pelo irmão, correu. Aliviou-se ao ouvir que era uma mulher, sentimento que logo deu lugar novamente à aflição. “Enquanto não o encontrarem, ele está vivo”, afirmou, com fé. A família dela aguardava, calada, uma resposta sobre o paradeiro do rapaz e da esposa dele, soterrados junto ao filho de 3 anos - achado morto ainda no sábado.
O auxiliar de manutenção Alessandro Pereira veio de Camocim de São Félix, cidade do Agreste do Estado, que fica a 123 km do Recife, para saber, de fato, quem havia falecido na família. “Chegou a informação que tinham morrido todos. Depois, que tinham morrido 2. Depois que não morreu ninguém. Então vim saber”.
Ele perdeu o primo, a cunhada e o genro de uma tia, que tentavam salvar os móveis da casa de uma vizinha, que foi atingida antes pelas águas, quando a barreira desabou. “Meu outro primo se salvou entrando em uma geladeira”, contou.
Francisco Carlos, que mora há 26 anos no Monte, viu a rua pacata onde vivia se transformar em um caos, com pessoas em desespero, gritando, correndo e pedindo “socorro” na manhã do sábado. “A população veio em peso ajudar, cavando com foice para tirar os matos e escombros que estavam sobre os corpos”.
Antes disso, segundo ele, era comum que crianças brincassem pelas ruas mesmo à noite, assim como homens jogarem dominó ou conversa fora na frente das casas, muitas ocupadas pelas mesmas famílias há décadas, passando de pai para filho. Agora, tornou-se, para todo o Brasil, a área com maior número de vítimas do Estado no inesquecível 28 de maio que ceifou, até agora, 56 vidas em Pernambuco.
A solidariedade entre os vizinhos tem acalentado a dor. Eles próprios instalaram geradores e refletores para que a procura por desaparecidos continuasse pela madrugada. Residências viraram pontos de entrega de marmitas, água e café, com doações chegando a todo momento em um ritmo frenético, mas ainda insuficiente.
Um deles está sendo tocado pelo agente de serviço Jefferson Souza, 35, e o desempregado Wellington Silva, 38. “A gente já distribuiu para mais de oito caldeirões de sopa e dez sacolas de pão. Os próprios moradores estão ajudando. Os vizinhos são unidos, ninguém tem problema com ninguém, era uma grande família. É uma perda muito grande para nós”, lamentou Jefferson.
A revolta é quase palpável no Monte Verde, uma comunidade cercada por pontos de risco que nem mesmo possuíam uma lona plástica para evitar os deslizamentos, que dirá monitoramento dos tantos imóveis construídos irregularmente à beira do precipício ou orientação para saída dos moradores quando já havia, há dias, previsão de fortes chuvas para o final de semana no Estado. “Como somos a divisa [entre cidades], somos esquecidos", disse Francisco.
As vidas perdidas são calculáveis, mas as perdas materiais e emocionais jamais serão. “Acabou minha casa, tenho que reconstruir”, informava a alguém o motoboy Elivan José, 46, por mensagem de voz enquanto olhava os escombros do seu lar. "Era pobre, mas era arrumada”, contou ele à reportagem. Pelo chão, quadros e flores que decoravam o dia a dia dele, da esposa e do filho confirmavam o que dizia.
“Foi muito rápido, não tive chance. Meu menino estava no quarto, achei que tivesse morrido. Tive que entrar para buscar ele em meio ao incêndio que se alastrou”, relatou Elivan. “Foi eu correndo, e as coisas vindo atrás de mim. Quando encostei na parede, a terra parou de vir. Foi Deus”, agradeceu a esposa dele, a dona de casa Juliana Lúcia, 38 anos.
Traumatizado, o filho do casal, de apenas 12 anos, precisou ser afastado da localidade depois de ver o próprio colega morto, com o braço arrancado. “Ele ficou em transe, calado. Disse que não queria mais vir para cá. Está na casa do avô agora”, contou Elivan.
Na memória de quem se salvou, ficará, para sempre, as lembranças dos corpos de rostos conhecidos que foram feridos mais que fisicamente, como também pela negligência de um Estado que foi, acima de tudo, incapaz de impedir que mais um desastre anunciado acontecesse. Na história da Comunidade Monte Verde, o cheiro de terra molhada jamais deixará de ser sentido.
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