Por Fernando Castilho*
Zenaide Barbosa era editora-geral do Diário de Pernambuco na época em que eu fazia meu penúltimo período de estágio quando, na noite do 12 de maio de 1978, a Polícia Federal estourou o Partido Comunista Revolucionário liderado pelo estudante de Sociologia Edival Nunes da Silva, o Cajá.
Selênio Homem de Siqueira, então editor de Vida Urbana, me pautou para ver a movimentação no campus da UFPE onde ele estava também fazendo seu penúltimo período.
Eu tinha estudado com Cajá no Ginásio Pernambucano, onde chegamos a fazer um jornal do grêmio, já com textos que a direção do GP fazia questão de ler.
Na manhã do dia seguinte as universidades estavam em polvorosa e a ideia de Selênio era dar um panorama da repercussão do estouro da célula comunista, segundo a Polícia Federal.
Eu passei a tarde no campus e depois de ouvir uma tempestade de discursos estava indo pegar a Kombi do DP quando um aluno estava fixando um cartaz com a frase: Cajá está sendo torturado e você ainda vai à aula?
Junto com o fotógrafo ajustamos o cartaz numa das paredes do prédio dos Institutos Básicos.
Na Redação, o editor de primeira página Jodeval Duarte deu um pulo da cadeira quando viu a foto. "Vai para a capa", disse exultante. No dia seguinte, todos os campis das universidades pararam com a capa do DP. A frase virou tema de vários estudos sobre os últimos da ditadura com as mais diversas abordagens.
O então superintendente da PF, Antônio Han quase teve um infarto ao ler o jornal então líder absoluto no Nordeste.
No começo da tarde, cheguei na Redação me achando o estagiário mais importante do jornalismo brasileiro quando o contínuo me avisou que "Dona Zenaide queria falar com você".
Ela não deixou eu entrar na sala e disse: Vamos ali na Polícia Federal que o Antônio Hann quer falar comigo e você. Sem entender nada e sem ter coragem de perguntar, fui.
O policial (que era gaúcho) nos recebeu com cortesia, mas foi duro na cobrança e mais ainda em relação a foto.
Iniciou-se uma discussão semântica sobre alguns trechos da matéria com Hann dizendo que uma das coisas que havia feito foi dizer expressamente que ninguém encostasse um dedo em Cajá.
Cajá fazia parte do grupo de auxiliares de Dom Helder Câmara, que não gostou nenhum pouco de saber que parte da biblioteca do PCB estava nas dependências do prédio, que hoje abriga um dos acessos ao Shopping Boa Vista.
Zenaide não admitiu nenhum erro de apuração sobre a matéria. E depois de quase uma hora, Hann despediu-se dizendo de sua preocupação, mas reconhecendo que não havia conseguido fazer prevalecer seu ponto de vista sobre a cobertura do DP.
Sai da sala do prédio da PF no bairro do Recife sem entender nada. E sem ter dado uma palavra na discussão dos dois.
De volta ao DP ela fechou a porta com a chave e desabafou: Seu merda. Como é que você faz uma matéria bosta dessa, cheia de erros de apuração e ainda produzindo a foto. E me obriga a desenvolver uma tese para justificar seus erros?
Sem entender nada eu vi naquela hora a ficha cair sobre a importância de uma apuração nesse tipo de matéria. E já na porta de sua sala perguntei se continuava no estágio na empresa?
Ela disse. O que? Volte para a cobertura e diga a Selênio Homem para assinar suas matérias. E vê se não faz outra merda, seu bosta.
Ninguém na redação soube desse esporro. E eu terminei toda a cobertura admirando a coragem de Zenaide num período tão sério como naqueles anos.
Anos mais tarde eu perguntei a ela por que tinha tido aquele comportamento?
Ela me olhou e disse: Fernando, seu tivesse aberto, o Hann iria ficar pautando a cobertura. E ele entendeu isso.
Foi quando eu tive a chance de agradecer a coragem daquela mulher num tempo que dezenas de editores homens amarelaram. E eu só estou contando essa história porque pedi a ela para revelar o fato anos depois.
A vida colocou Zenaide Barbosa no início de minha carreira e hoje quando ela já não está mais entre nós, eu me sinto à vontade para revelar seus gestos de coragem cívica e profissional.
Descanse em paz, Zena. Foi muito bom começar a carreira sob sua proteção.
*Fernando Castilho é colunista de Economia do Jornal do Commercio e estagiou no Diário de Pernambuco sob supervisão de Zenaide Barbosa em 1979. Ele voltou ao jornal por duas vezes, de onde saiu em 1998 para assinar a coluna JC Negócios, onde permanece.