Vida na Favela: Lagartixa que virou pirão retrata desamparo no dia a dia da população

Dando continuidade à série Vida na Favela, produzida pelo JC e pelos veículos do SJCC, abordamos a rotina das populações nas comunidades

Publicado em 20/12/2024 às 15:23 | Atualizado em 20/12/2024 às 20:01
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Chegar em casa e ter a sensação de estar em um lar. Andar pelas ruas e ter a certeza de que está amparado. Aquilo que é realidade para tantas pessoas ainda é um sonho almejado por moradores de favelas e comunidades urbanas de Pernambuco.

O estado, que é o terceiro do Brasil com maior número de favelas - são 849 -, ainda não encontrou soluções efetivas para problemas históricos. E mais de um milhão de pernambucanos que vivem nestes territórios ainda enfrentam desafios diários.

Dando continuidade à série Vida na Favela, abordada pelo JC e por todos os veículos do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, serão explorados neste conteúdo o dia a dia dessas populações e mais dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em novembro, com base no último censo de 2022.

Conheça Encanta Moça, a terceira maior comunidade de Pernambuco

Para o instituto, são consideradas favelas e comunidades urbanas os territórios onde há predominância de domicílios com alto grau de insegurança jurídica, ausência ou oferta incompleta de serviços públicos e áreas com restrições à ocupação devido ao risco ambiental.

Veja o ranking das favelas com mais habitantes no Estado:

  1. São Francisco - Cabo de Santo Agostinho: 11.167 habitantes
  2. Compesa - Jaboatão dos Guararapes: 11.148 habitantes
  3. Encanta Moça - Recife: 8.878 habitantes
  4. Jardim Piedade - Jaboatão dos Guararapes: 8.713 habitantes
  5. Carnequinha (Sapucaia) - Cabo de Santo Agostinho: 8.167 habitantes
  6. Chico Mendes (Linha Nova) - Recife: 7.786 habitantes
  7. Charneca - Cabo de Santo Agostinho: 7.731 habitantes
  8. Alto da Bondade - Olinda: 7.582 habitantes
  9. Nobre - Paulista: 7.497 habitantes
  10. Fragoso Setor B - Paulista: 7.438 habitantes

Em São Francisco, no Cabo de Santo Agostinho; na Compesa, em Jaboatão dos Guararapes; e na Encanta Moça, no Recife, morar inspira mais precariedade na infraestrutura do que acolhimento. As três maiores favelas do estado têm, juntas, mais de 31 mil pessoas, que veem a ausência do poder público todos os dias, dentro e fora de casa.

Diante deste cenário, a Rede de Favelas de Pernambuco (Refavela) atua conectando moradores de favela a outras organizações sociais, empresas e governos, buscando levar mais oportunidade e dignidade para a população.

“A gente vem caminhando pelo Recife e pela Região Metropolitana e vem encontrando várias famílias em situação de extrema vulnerabilidade. Teve o caso de uma família moradora de uma favela que sobrevive com 11 reais durante uma semana. Uma mãe solo, catadora de materiais recicláveis, com quatro crianças”, conta Altamiza da Favela, representante de relações institucionais da Refavela.

Artur Borba/JC Imagem
Atuação de Altamiza da Favela, representante de relações institucionais da Refavela, revela ainda mais as desigualdades no estado - Artur Borba/JC Imagem

A atuação diária de Altamiza revela ainda mais as desigualdades no estado. “Já caminhei por lugares onde uma mãe estava pegando a lagartixa da parede e fazendo um pirão para dar aos filhos. É uma realidade que machuca. Eu acredito que a organização da sociedade civil tem um papel fundamental, trazendo e apontando caminhos e soluções”, destaca.

A gerente de incidência em políticas públicas da Habitat para a Humanidade Brasil, Raquel Ludermir, ressalta que “a urbanização de favelas para prover as infraestruturas necessárias para se considerar moradia digna nessas comunidades urbanas precisa ser uma questão prioritária para as políticas públicas habitacionais e intersetoriais”.

As palafitas da Encanta Moça

Na favela Encanta Moça, localizada na Zona Sul do Recife, por exemplo, problemas habitacionais ainda atingem a população vulnerável.

A comunidade, que encontra na pesca artesanal de sururu e marisco sua subsistência, ainda tem morador que se expõe à precariedade vivendo em palafita.

É o caso de Sandro Lourenço. Sem geladeira ou freezer para armazenar os pescados - e a própria comida -, sua rotina se divide em pescar e vender o sururu e o marisco para não perder o produto.

Artur Borba/JC Imagem
Na favela Encanta Moça, ainda tem morador que se expõe à precariedade vivendo em palafita - Artur Borba/JC Imagem

“Eles falaram que [quem mora em] palafita tinha prioridade e eu estou aqui. Não sei por que”, conta. Em poucos metros quadrados, compartilha uma palafita com o cachorro, Beethoven, e se distancia de serviços públicos básicos para a dignidade humana.

Saneamento para alguns

Canalização de água e destinação do esgoto ainda não são serviços disponibilizados para toda a população nas favelas pernambucanas.

Muitas vezes, o direito é restrito e, o que o Marco Legal do Saneamento determinou em 2020 - que, em 2033, 99% da população brasileira deverá ter acesso à água e 90% a esgotamento sanitário - se torna uma realidade ainda mais distante.

Veja os índices de acesso à rede geral nas maiores favelas de Pernambuco:

Thiago Lucas/ Design SJCC
Dados das favelas - Thiago Lucas/ Design SJCC

Há mais de dez anos, Edna Maria da Silva, de 74 anos, divide a frente da casa com ratos e porcos, na favela da Compesa. A poucos metros do portão de dona Edna, o lixo se acumula e o esgoto passa, sem tratamento.

“Esse rego está aqui há mais de 14 anos. No inverno, invade tudo: não passa carro, não passa gente, não passa nada. Essa rua fica totalmente alagada”, conta.

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Há mais de dez anos, Edna Maria da Silva, de 74 anos, divide a frente da casa com ratos e porcos, na favela da Compesa - Artur Borba/JC Imagem

Conhecido como Nivaldo do Gás, Nivaldo Virgílio de Lima, de 42 anos, é líder comunitário e atua com trabalhos sociais na mesma favela. Ele destaca que a comunidade sofre com demandas históricas que englobam todas as categorias do IBGE para considerá-la uma favela: da insegurança jurídica à ausência de serviços públicos.

“As pessoas não têm água encanada e precisam ter CEP e ter a propriedade da casa”, explica.

Aqui é a comunidade praticamente invisível ao poder público
Nivaldo Virgílio de Lima, 42 anos. Líder comunitário da Compesa

Além do esgoto, a população da Compesa - que afirma que a comunidade leva o nome por estar localizada no entorno de um reservatório da Companhia Pernambucana de Saneamento - sofre com a falta de abastecimento de água.

Dona Marisa dos Santos tem 81 anos e precisa encontrar alternativas para ter acesso à água. O que deveria ser um direito é um custo a mais para a aposentada.

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Parte da população na favela da Compesa precisa encontrar alternativas para ter acesso à água - Artur Borba/JC Imagem

A água precisa ser armazenada em baldes, caixas, garrafões e cumbucas para que nenhuma gota fique perdida. “Água é ouro e cada caixa de mil litros é R$ 30”, conta. Ela também aproveita a água das chuvas pelas calhas para lidar com os afazeres domésticos.

A gente muitas vezes tem que pagar para ter a caixa abastecida e é um descaso
Márcio da Costa Lindozo, 39 anos. Morador da Compesa

Infraestrutura e oferta de serviços

Em São Francisco, duas unidades de saúde atendem toda a população. Na Compesa e na Encanta Moça, o cenário é pior: apenas um estabelecimento do tipo, em cada, ampara a comunidade.

Os desafios vão desde a baixa oferta de medicamentos à dificuldade em conseguir um acompanhamento médico.

Na Encanta Moça, o cenário é um pouco melhor. Apesar da existência de apenas uma unidade de saúde, a dona de casa Maria do Carmo Rodrigues, de 72 anos, destaca que a situação está melhor do que quando chegou na região, há 53 anos.

“A gente saía às quatro horas da manhã para pegar uma ficha. Agora, na hora que a gente chegar, a gente é atendido”, relata.

Para ela, a infraestrutura da comunidade melhorou nos últimos anos, mas ainda precisa avançar. “Antigamente aqui era cheio d’água, uma maré [quando chovia]. Eu gosto, mas tem que melhorar a limpeza. Tem dia que a prefeitura não entra e a gente tem que limpar”, pontua.

Acesso ao ensino básico

“A matrícula deveria ser para todos, não é?”. Com essa reflexão, a dona de casa Marineide Monteiro da Silva, de 42 anos, relata a dificuldade para colocar a filha Edite, de 3, na vida escolar. Além de Edite, ela tem mais seis filhos e vive na favela da Compesa, em Jaboatão dos Guararapes.

“Eu e meu esposo colocamos ela na escola paga. A gente paga R$ 160 por mês, e é um dinheiro que faz falta”, conta.

O auxiliar de logística Márcio da Costa Lindozo, de 39 anos, sofre com o mesmo problema na comunidade. De acordo com ele, muitos pais e responsáveis precisam atravessar a cidade para garantir o direito das crianças à educação.

“Tem uma creche que no momento não está funcionando e as mães optam por levar para Piedade, para o Recife ou até mesmo pagar para alguém para poder ir trabalhar e ir ao médico”, relata Márcio.

Em relação a creches, estamos em situação de abandono
Márcio da Costa Lindozo, 39 anos. Morador da Compesa

A situação não é diferente na favela Encanta Moça, que faz fronteira com bairros como Boa Viagem e Pina. O líder comunitário Lenildo Roque, conhecido como Coxinha, afirma que os adolescentes precisam sair da comunidade para ir à escola.

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Dificuldade para colocar as crianças na vida escolar é um desafio para moradores das favelas pernambucanas, como Marineide Monteiro da Silva - Artur Borba/JC Imagem

“A gente precisa de uma escola estadual para abranger mais alunos porque eles saem daqui e vão para Brasília Teimosa”, narra.

Sem investimentos em saúde, educação e saneamento, as comunidades ficam expostas à vulnerabilidade. Os desafios se perpetuam e as populações das favelas carecem de proteção e acolhida pelo poder público.

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Aqui é a comunidade praticamente invisível ao poder público

Nivaldo Virgílio de Lima, 42 anos. Líder comunitário da Compesa
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A gente muitas vezes tem que pagar para ter a caixa abastecida e é um descaso

Márcio da Costa Lindozo, 39 anos. Morador da Compesa
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Em relação a creches, estamos em situação de abandono

Márcio da Costa Lindozo, 39 anos. Morador da Compesa

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