Divulgar a quantidade de projetos apresentados durante o mandato e utilizar os números para distinguir a boa da má atuação é um costume comum nas Casas Legislativas do Brasil. Na Câmara Municipal do Recife, vereadores que concorrem à reeleição usam a quantidade de projetos apresentados durante o mandato para impulsionar a candidatura, na tentativa de se mostrar atuante. Só em 2020, durante as 66 sessões já realizadas, os vereadores da capital pernambucana fizeram 7.646 proposições, entre projetos de lei, projetos de resolução, decretos legislativos e requerimentos.
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Se contarmos do início desta legislatura, em 2017, para cá, o número chega a 34.475 propostas legislativas, segundo o Sistema de Processo Legislativo (SAPL) da Câmara. “É possível perceber, através dos números apresentados, a produtividade das vereadoras e dos vereadores do Recife, elaborando, discutindo, aperfeiçoando e votando matérias importantes para a cidade”, disse, por nota, o presidente da Câmara, Eduardo Marques (PSB), ao JC.
Campeã de votos nas últimas eleições, a vereadora Michele Collins (PP) lidera também o ranking de produção legislativa. Entre 1º de janeiro de 2017 e 16 de outubro de 2020, a parlamentar apresentou nada menos que 169 projetos de lei ordinária. Isso representa cerca de 52% do que foi apresentado pelo segundo vereador mais produtivo, Almir Fernando (PCdoB), que apresentou 81 projetos.
No entanto, a preocupação em ampliar o volume da produção legislativa prejudica a qualidade das proposições e desvia o foco dos parlamentares das responsabilidades mais relevantes do Legislativo, avaliam especialistas.
A cientista política e professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho), Priscila Lapa, avalia que a preocupação com os números resulta numa série de proposituras sem impacto à população e chama atenção a um problema mais grave, o desconhecimento dos parlamentares sobre o teor da maioria dos projetos apresentados no seu mandato.
“A postura muito passiva dos vereadores em relação à produção das políticas públicas é muito decisiva: eles participam apenas da parte da aprovação, na maioria das vezes, e não no apontamento de questões técnicas, de demandas que vêm da sociedade”, afirma a professora. “Assim, o papel acaba sendo o de uma liderança comunitária, com alocação de recursos da forma mais pragmática possível. Os mandatos são exercidos sem uma visão mais estruturadas das questões da cidade. Com isso, até a própria função de fiscalização fica extremamente comprometida”, completa.
Esse modelo de mandato se reflete no dia a dia da Câmara. A cada dez leis aprovadas pelos vereadores da capital pernambucana, quatro referem-se à criação de datas ou nomeação de equipamentos públicos, como ruas, praças e prédios. “Este tipo de projeto não vai ter impacto direto na vida do cidadão. Porque não é um projeto que trata de políticas públicas, de serviço público”, diz Alisson Dantas, integrante da ONG Voto Consciente, que se destina a fiscalizar o funcionamento de câmaras pelo Brasil.
Dos 235 projetos que se tornaram lei no Recife, desde 2017, 105 tiveram teor considerado irrelevante. “A saúde, a segurança, tudo que importa de verdade, não é afetado em função dessas propostas, que, por isso, não têm relevância social”, argumenta.
Juntos os líderes no ranking de produção legislativa na Câmara do Recife, Michelle Collins e Almir Fernando viram 45 dos seus projetos serem sancionados pelo prefeito Geraldo Julio (PSB) ou promulgados pela Casa. Dentre eles, 57,7%, isto é, 26 projetos, tinham pouco ou nenhum efeito prático na vida do recifense. “Infelizmente, este é um número padrão no Brasil", afirma Alisson.
Além disso, dos 33.248 requerimentos aprovados pela Casa, 1.813 foram a destinados a votos de aplausos ou repúdio a instituições e personalidades e inclusão de transcrições de reportagens nos anais da Câmara.
Falha
Para a professora de Direito Público e Administrativo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Patrícia Teixeira, o Parlamento falha por não legislar sobre assuntos de real interesse social. "Em vez de legislar sobre tudo, era importante que legislassem sobre algo que realmente seja dotado de interesse social. A questão é que muitas propostas fogem da realidade da nossa cidade", apontou.
Já o cientista político e professor da Asces/Unita, Vanuccio Pimentel, lamentou a realidade parlamentar ao destacar que os vereadores teriam um papel muito mais relevante se concentrassem na tarefa de fiscalizar as ações do Poder Executivo em vez de se preocupar com os números. Na avaliação dele, a preocupação com a quantidade provoca uma produção supérflua, focada na concessão de honrarias ou na denominação de ruas e equipamentos públicos.
"Se o parlamentar fizesse esse trabalho (fiscalizar o Executivo) bem feito, ele estaria realizando um ato nobre. Mas quando se foca na quantidade, há questões mais supérfluas que acabam se sobressaindo entre as propostas, como promover a entrega medalhas ou dar novos nomes às ruas", frisa.
Custo-benefício
“[Esses resultados] põe em xeque o custo do legislativo e a qualidade sua produção”, afirma Igor Sacha, da ONG Seja a Mudança, que busca combater os chamados penduricalhos na Câmara do Recife.
A Constituição Federal prevê importantes funções a serem exercidas pelos vereadores. Além de fiscalizar o Executivo municipal, o vereador deve legislar sobre tributos locais (IPTU, ISS, taxas), orçamentos anuais e plurianuais e concessões de serviços públicos, entre outras responsabilidades. Para desempenhar suas funções, os vereadores contam com excelentes condições de trabalho.
Segundo a ONG, somados o salário (R$ 14.365,00) e todos os benefícios, o parlamentar representa uma despesa de R$ 85.260,86, por mês. Quando o tamanho do gasto é calculado por ano o total de recursos para cada vereador ultrapassa R$ 1 milhão. Considerando o pacote completo, que inclui todos os parlamentares ao longo dos quatro anos do mandato, a despesa chega a R$ 160 milhões. Isso só com os vereadores e seus gabinetes.
No Recife, cada vereador pode contratar até 18 assessores para povoar seu gabinete, gastando até R$ 58.800,00 mensalmente por parlamentar. Além disso, cada um deles conta com auxílio-gasolina (R$ 2.300,00), verba para Correios e telefone (R$ 2.100,00) e o auxílio-paletó (um salário a mais no início e no término da legislatura).
O JC não conseguiu contato com os vereadores Michele Collins e Almir Fernando, citados na reportagem, até o fechamento desta edição.
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