FEMINICÍDIO

Feminicídio: Brasil contrasta legislação avançada e cultura patriarcal

Os seis casos de mulheres assassinadas, registrado no feriado de Natal, ocorreram no Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná

Mirella Araújo
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Mirella Araújo
Publicado em 01/01/2021 às 8:30
MARCOS OLIVEIRA/SENADO
Ao menos seis projetos de lei relacionados ao combate da violência contra a mulher, aguardam serem discutidos e aprovados no Senado - FOTO: MARCOS OLIVEIRA/SENADO
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A série de feminicídios ocorridos no feriado de Natal causou reação imediata de repúdio no Congresso Nacional. Vários parlamentares condenaram os assassinatos que envolveram seis mulheres, entre elas a juíza Viviane Vieira do Amaral, assassinada a facadas no dia 24 de dezembro, no Rio de Janeiro, e a cabeleireira Anna Paula Porfírio dos Santos, de 45 anos, morta a tiros no dia 25 de dezembro, no Recife - ambas vítimas de seus ex-companheiros.

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Ao comentar que a “vida das mulheres importa”, a senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), pediu celeridade na aprovação de projetos que tramitam no Senado e que podem auxiliar no combate à violência e à proteção das mulheres. Ela é autora do PL 1.909/2019, que trata da inclusão e prevenção à violência contra a mulher no currículo escolar. “Não basta formar as meninas para que exijam seus direitos. É preciso também educar as novas gerações de meninos, a fim de que reconheçam a igualdade como pedra fundamental de seus relacionamentos e contribuam para a superação de preconceitos”, publicou a senadora, no Twitter.

De acordo com a Agência Senado, ao citar os casos de feminicídio e a reação dos senadores, há pelo menos seis projetos de lei que aguardam discussão e aprovação, todos com intuito combater a violência contra a mulher. As matérias que ainda aguardam encaminhamento tratam desde a responsabilidade civil do agressor em relação a danos morais e materiais causados à vítima de violência doméstica e familiar (PL 4.790/2020). Até a garantia de que a vítima de crime sexual terá um atendimento policial e pericial com profissionais capacitados, preferencialmente mulheres, e não será exposta durante a investigação, evitando a revitimização (PL 5.117/2020).

No entanto, segundo a vice presidente e diretora pedagógica do Instituto Maria da Penha, a filósofa e mestra em Ciências Políticas pela UFPE, Regina Célia Barbosa, antes de se criar novas legislações é necessário intensificar o que tem sido determinado na lei Maria da Penha.

“É preciso fazer um levantamento íntegro de onde é que a lei está sendo aplicada adequadamente, em consonância com as políticas públicas, e onde ela não está sendo efetiva. A partir daí é que podem ser definidos critérios que impulsionem os municípios no enfrentamento da violência contra a mulher, com base em dados reais fazendo uma análise qualificada dos crimes cometidos”, declara.

FILIPE ALMEIDA/DIVULGAÇÃO
Regina Célia Barbosa - FILIPE ALMEIDA/DIVULGAÇÃO

Para a docente, a lei Maria da Penha (Nº 11.340/06), que tornou a punição para agressões contra a mulher mais rigorosa e entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006, ela “não é perfeita, mas é uma lei completa”. “Ela é completa quando no artigo 7, se define cinco tipos de violência e depois, enquanto política pública, cada uma destas violências são objetivamente caracterizadas das suas mais nuances. Logo depois, no artigo 8, ela tem o caráter mais pedagógico, explicando a necessidade de qualificação e formação permanente dos agentes de segurança pública, de saúde, educação, corpo de bombeiros, habitação e economia”, afirma a vice-presidente do Instituto.

No primeiro semestre de 2020, segundo dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e, que constam no 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 648 mulheres foram assassinadas no Brasil - todos os crimes tiveram motivação relacionada ao gênero. O índice representa aumento de 1,9% em relação ao mesmo período, de janeiro a junho, no ano passado.

“Onde está o nó? Está no reconhecimento da celeridade, do valor, da atenção e cuidado que envolve a questão da violência doméstica. Essa atenção passa pela criança de dois anos e vai até o ministro do Supremo Tribunal Federal (SFT), Luiz Fux, passando também pela presidência da República”, afirma Regina Célia, referindo-se à nota emitida pelo presidente do STF sobre o feminicídio contra a juíza Viviane Vieira.

“Deve ser redobrada, multiplicada e fortalecida a reflexão sobre quais medidas são necessárias para que essa tragédia não destrua outros lares, não nos envergonhe, não nos faça questionar sobre a efetividade da lei e das ações de enfrentamento à violência contra as mulheres. O esforço integrado entre os Poderes constituídos e a sensibilização da sociedade civil, no cumprimento das leis e da Constituição da República, com atenção aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, são indispensáveis e urgentes para que uma nova era se inicie e a morte dessa grande juíza, mãe, filha, irmã, amiga, não ocorra em vão”, afirma nota do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A contradição entre possuir a terceira melhor legislação no combate à violência doméstica, considerada pela Organização das Nações Unidas, e está desde 2015 no quinto lugar do ranking mundial de países que mais cometem feminicídio, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), só reforça a provocação sobre o que é preciso ser revisto no Brasil não apenas do ponto de vista legislativo.

VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Apoio à Mulher do Ministério Público de Pernambuco, Fátima Araújo, faz a reflexão sobre a estrutura cultural milenar que existe na sociedade quando se cobra por medidas punitivas contra esse tipo de crime, mas impõe comportamentos padronizados dentro do modelo patriarcal que se critica. “Essa mesma população, que clama por posturas diferenciadas em eventos trágicos como os feminicídios que ocorreram no Natal de 2020, no Brasil, é a mesma população que ratifica as formulações de gênero impostas há dezenas e dezenas de anos, que o universo feminino é rosa e masculino azul. A sociedade não aprendeu, de fato, que é uma sociedade machista e que ainda se pensa e se age nesse formato”, declara.

Fátima Araújo também endossa a defesa de que o combate efetivo a violência contra a mulher passa pela educação, antes mesmo das alterações legislativas. “Ainda que haja essas alterações e que se conheça a lei pela sociedade, a apreensão do tema gênero, propriamente dito, pela sociedade, está fica distante, por força do desconhecimento da matéria, no processo educacional da formação do ser humano. Tanto é assim que casos de violência doméstica, alcançando a sua forma mais covarde, que é o feminicídio, ocorrem em todas as camadas da população, incluindo, aquelas que tiveram acesso às melhores escolas e universidades”, declara.

Do ponto de vista da legislação, a coordenadora do Núcleo de Apoio à Mulher, considera que a lei Maria da Penha, caso fosse executada em sua totalidade, talvez não despertasse a necessidade de se criar novas leis sobre gênero. É nesse ponto que também entra a responsabilidade das esferas de poder seja estadual, municipal e federal, na aplicabilidade de recursos para proteger e dar sustento a estrutura de apoio as mulheres vitimas de violência. 

“Outro ponto é legislar, especificamente, para determinados tipos penais que são hoje, genéricos, por exemplo, a ameaça. A ameaça é um crime que pode afetar qualquer cidadão, mas a ameaça em face da lei Maria da Penha tem um diferencial porque sabemos, de tanta experiência que se tem na área, que um ameaçador da Lei Maria da Penha, tem característica diferenciada de um ameaçador de violência urbana”, afirma. No entanto, a aplicação da penalidade é a mesma para as duas situações.

“ Então, talvez precisássemos reformar as leis de proteção já existentes, no tema gênero, pontualmente, alterando as penas, quando da prática por violência de gênero, criando-se, por exemplo, parágrafos e alíneas. Existem ainda condutas que não são consideradas como crimes, ainda, e que podem ser legisladas, como por exemplo, a perseguição, mais conhecida como stalking”, declara a promotora.

FILIPE ALMEIDA/DIVULGAÇÃO
Cada mulher que é assassinada por negligência do poder público, por resistência da mentalidade patriarcal, por desvio de recursos de prevenção, é uma perda significativa para o nosso país", diz Regina Célia Barbosa - FOTO:FILIPE ALMEIDA/DIVULGAÇÃO

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