*VALDA COLARES
[...] Te espreito na curva do tempo
Perfume raro, esgarçado
Persigo no tênue momento
De um pensamento esboçado [...]
Magdalena Arraes
O texto acima é um excerto de um poema escrito por Dona Magdalena, aquando da ausência de Miguel Arraes, marido e seu grande parceiro de vida e, que deve tê-la recebido com muito amor, na dimensão em que se encontra.
Hoje, onze de julho de dois mil e vinte e quatro, o Recife amanheceu chovendo, um anúncio das muitas lágrimas que seriam derramadas pelas gentes pernambucanas, pelas gentes recifenses e cearenses. Neste dia cinzento e frio partiu Magdalena Arraes: a Dama da História.
Ela que foi por três vezes, primeira-dama do Estado de Pernambuco, condição única no nosso historial. Abraçou sem temor a vida que se desenrolaria ao unir-se com o então viúvo, governador da capital pernambucana. Ele trazia consigo oito filhos, frutos do seu casamento com Célia de Souza Leão. Apesar das dificuldades iniciais, Magdalena acolheu com todo o amor o trauma dos meninos, com esse gesto abraçou a nobre missão.
Mada, como era tratada em família, passou a viver esse novo contexto com a devida tranquilidade e o zelo que a circunstância exigia: esposa de Miguel Arraes e “madrasta” dos seus filhos. O casal teve dois rebentos, completando a família agora com dez membros!
Mada era uma mulher amorosa, discreta, simples, com vasta cultura, personalidade marcante, voz suave, porém muito determinada. Optou pelo proscênio, afinal, as exigências eram para além de um protagonismo político, que apesar da discrição, soube exercer seu papel com muita dedicação e distinção. Agora, além do marido, muitos filhos, uma casa, havia a função de primeira-dama para empreender dentro da missão que era designada à esposa de um governador.
Magdalena tinha muita consciência de si e, de quem era na vida de Miguel, tanto no privado, como no público. Por ocasião do golpe militar de 1964, interpelada por um soldado que montara guarda no Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual, perguntou o que ela fazia ali? Ela calmamente respondeu: “ora, eu moro aqui”.
Quando Miguel, deposto do governo, esteve preso em Fernando de Noronha, no período de nove meses, ele e Mada trocaram correspondências em francês, bem como ela o enviava livros também na língua francesa, uma vez que ela era professora do idioma, assim o ajudava a passar o tempo.
Após a saída de Miguel da prisão em Noronha, e a ida do casal para o Rio de Janeiro, malgrado a tensão do golpe e a perseguição dos militares, Mada precisou esconder os documentos importantes sob o colchão do berço de Mariana, primeira filha do casal. Algo que ela jamais imaginou que viveria, mas que assim o fez por uma questão de extrema necessidade, pois a qualquer momento sairiam do país.
Na partida para a Argélia em vinte e cinco de maio de mil novecentos e sessenta e cinco, destino do exílio, Magdalena estava grávida do filho caçula, Pedro que nasceria em Paris a onze de janeiro de mil novecentos e sessenta e seis. logo o único filho que viajaria com os pais. Não foi uma decisão fácil para ambos deixarem os filhos no Brasil. Entretanto, diante de um destino incerto preferiram poupar a família das possíveis dificuldades que encontrariam no caminho. Esse gesto demonstrou quantas renúncias Magdalena foi capaz de fazer, abdicando da convivência com sua filha ainda bebê, assim como também dos outros.
Contudo, quando parecia desmoronar, ela foi o esteio da família. Sua calma apaziguava aquele tempo de incertezas, perseguições e ameaças. Era preciso encarar a realidade e torná-la menos amarga e crua, para todos, sobretudo, às crianças. Todo um contexto a ser criado, para amenizar os danos e os impactos que poderiam ser causados por esse cataclisma.
Assim fez Magdalena no estrangeiro. A momentânea barreira imposta pela língua e pela cultura foi aos poucos sendo transposta. Mada tradutora natural de Miguel, uma vez que era sua esposa e ele não dominava ainda o idioma francês. Desta forma ela conseguiu organizar o cotidiano dentro daquela condição de exilados.
Ocuparam-se com outros brasileiros exilados, com ações e encontros políticos, com lideranças argelinas, brasileiras, angolanas, caboverdianas, guineenses, moçambicanos, latino-americanos, franceses, entre outros.
E dona Magdalena sempre presente, ainda que fosse como intérprete, ou testemunha de um tempo incomum em sua própria história e da sua família: o degredo. Com a chegada dos filhos, eles precisavam de uma rotina naquela terra estrangeira. José Almino, o filho mais velho de Miguel foi cursar a universidade em Paris. Os outros começaram a frequentar a escola: Augusto, Guel, Mariana, Lula, Nena, Marcos e Maurício. E Mada foi dar aulas de português na Faculdade da Argélia, na seção de Letras. Além do idioma pátrio, ela também mobilizava noções de literatura brasileira, solicitada pelos argelinos. Ana, já casada, foi algum tempo depois, mas a passeio
A vida ia sendo reorganizada, “um dia de cada vez”, como ela costumava dizer, embora não tenha sido nada fácil. Foi na Cruzada de Ação Social, que Magdalena percebeu que ali seria um território onde ela poderia contribuir efetivamente para a melhoria de vida da população pernambucana, recifense em particular. Uma das suas iniciativas resultou na criação da primeira Casa de Apoio para acomodar as pessoas sem condições materiais ou que vinham do interior, fossem pacientes, familiares, acompanhantes, para tratamento nos hospitais públicos. Mada dizia que as “pessoas tinham de ser tratadas com dignidade”.
Dona Magdalena ressignificou o sentido e a existência da Cruzada de Ação Social, sem dúvidas, uma das suas marcas indeléveis, revelando sua força e determinação.
Responsável pela criação do programa Boa Visão, que entregava óculos gratuitamente à população carente; pela distribuição de enxovais para gestantes necessitadas, com direito ao acompanhamento do pré-natal; nas creches, possibilitou a presença de pediatras, psicólogos, psicopedagogos, enfermeiras e assistentes sociais.
Bastante observadora, conhecia a alma humana com profundidade. Recebia e tratava a todos sem distinção, com afeto e muito respeito, não importava qual fosse a posição social. De esposa de presidentes, embaixatrizes, ou uma camponesa, dispensava profunda atenção a todos. E ressalvava: “gente tem que ser tratada como gente”.
Filha primogênita de Luísa de Saboia Fiúza e João Baptista Menescal Fiúza, a mais velha dos oito irmãos, passou a infância no Rio de Janeiro, Botafogo, parte da adolescência viveu num internato em Petrópolis (RJ). De volta à capital fluminense fez o “Clássico” (equivalente ao Ensino Médio) no Colégio da Imaculada Conceição, após o término foi para a Universidade Católica cursar Letras Clássicas, onde aprendeu grego e latim, local em que conheceria Violeta Arraes, a Rosa de Paris, sua futura cunhada.
À frente do seu tempo, nos anos 1951, embarcava sozinha, com destino a Paris a bordo do navio Louis Lumiere, fora aprovada com uma bolsa ofertada pela Embaixada da França, para aperfeiçoar o idioma francês. Estudou também na Sorbonne, onde fez Práticas Pedagógicas. Morou em um foyer (residência estudantil) e levava uma vida muito simples. Residiu em casas de famílias, imbricou-se na cultura local, convivendo com famílias francesas, mergulhando em seus valores e estilos de vida. Voltou à França nos anos 1960, tendo se hospedado na casa da amiga Violeta Arraes, irmã de Miguel, foi nessa ocasião que o conheceu.
Magdalena foi professora de latim e francês no Colégio Santa Rosa (RJ), ministrava aulas sobre didática e metodologias no ensino do latim, para padres e freiras no Espírito Santo. “Da faculdade eu me espalhei pelo mundo”, afirmou ela certa vez. E de fato se espalhou!
Deixou partículas de sua existência espalhadas em cidades, países e continentes por onde viveu. Seus gestos, ponderações e ações transformaram sobremaneira a vida do povo simples desse Pernambuco, Estado que ela amou com devoção e do qual a recebeu de braços abertos.
Magdalena Arraes merece todas as nossas homenagens e honrarias!
Mada leva consigo um pedaço da história e da memória contemporânea de Pernambuco. Sua presença no Estado será inapagável e inextinguível, em suas contribuições como primeira-dama e como ser humano bondoso que era. Mas deixa filhos, netos, bisnetos, familiares, amigos, admiradores e um legado incontestável! Além de imensas saudades.
*Valda Colares, autora da biografia 'Magdalena Arraes: a dama da história'