Quando se inscreveu há cerca de dois anos para participar do Grupo Base da Marinha, que permanece durante 13 meses isolado no extremo sul do mundo, a médica e Capitã Tenente Letízia Aurilio Matos sabia que enfrentaria situações adversas. Entre elas, passar boa parte do ano com apenas quatro horas de luz solar, cercada por neve e submetida a mudanças climáticas bruscas, com temperaturas de até 20 graus abaixo de zero. Sem falar de uma possível emergência com as pessoas de quem deve cuidar. Todo o longo processo seletivo e o treinamento prévio para a missão, que inclui desde análise do histórico nas Forças Armadas a rígidos testes físicos e psicológicos, parecem agora muito mais simples diante da complexidade da pandemia do novo coronavírus. “Ninguém previa algo nessa dimensão. Nós também não, mas rapidamente nos adaptamos para lidar com esse novo cenário”, conta.
Dra. Letízia é a única mulher entre 16 militares que formam neste momento um seleto grupo de brasileiros protegidos da contaminação, quando os casos de covid-19 disparam no País. Eles são responsáveis pela manutenção da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), a base do Brasil na Antártida, hoje único continente livre da doença no mundo. Condição essa que provavelmente só foi possível porque a maior propagação do vírus coincidiu com o fim do verão nas ilhas antárticas, em março, quando os últimos navios com pesquisadores deixam a região antes que tudo congele e ninguém mais possa entrar ou sair. No inverno (do fim de março ao início de novembro), a população espalhada pelas estações científicas de quase 30 países cai de cerca de 5 mil para no máximo mil pessoas.
>> Veja especial sobre a Antártida e a Terra do Fogo
>> Confira a experiência da equipe do Jornal do Commercio no continente gelado
O alívio de estar distante do foco do vírus, no entanto, só não é completo por causa da preocupação com parentes e amigos expostos aos riscos de infecção no País. “Por um lado, temos o conforto de saber que estamos seguros. Mas por outro, o receio de ocorrer alguma coisa com quem a gente ama é muito grande, porque acompanhamos de longe. Não podemos sair daqui”, resume a médica, que mantém contato diário com os pais e a irmã no Rio de Janeiro, entre uma e outra demanda profissional. Entrevistas para a imprensa têm se somado às obrigações nos últimos dias. Com a reportagem do Jornal do Commercio, a conversa foi por videoconferência no fim da semana passada, ao lado do chefe da EACF, o Capitão de Fragata Luciano de Assis Luiz.
Para ele, a maior aliada para atravessar esse período tem sido a tecnologia. Um diferencial elogiado pela maioria dos pesquisadores que passaram nesta temporada pela nova estação, inaugurada oficialmente em 15 de janeiro último, oito anos após um incêndio ter destruído a estrutura anterior.
O atual Grupo Base desembarcou na Baía do Almirantado (Ilha Rei George), onde fica a EACF, em 4 de novembro de 2019 e só vai embora na primeira quinzena de dezembro próximo, quando os dois navios de apoio logístico e científico mantidos pelo Programa Antártico Brasileiro (Proantar) retornarem. “Essa é a missão mais longa da Marinha, mas graças ao 4G eficiente e às ferramentas que temos aqui, posso acompanhar meu filho de perto e ver a alegria dele, que está safo pra caramba com as aulas a distância. Pensei até que fosse ficar estressado com o confinamento, mas, na verdade, ele está me ensinando muito”, diz o comandante, orgulhoso. Segundo ele, todos os integrantes do Grupo Base são liberados para falar com as famílias no horário que desejarem, o que ajuda a combater a saudade e diminuir a angústia trazida pela pandemia.
Habituados ao distanciamento da família e da vida social em terra, seja nas missões em navios, seja em lugares remotos como a Antártida, os militares aconselham quem está no confinamento obrigatório no Brasil a ter paciência e estabelecer uma rotina.
No dia a dia da estação, a principal mudança imposta pela pandemia diz respeito ao reforço dos protocolos de higienização dos materiais que são lançados pelos aviões Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira (FAB) nos meses mais frios do ano. Nesse período, o mar congelado inviabiliza o tráfego de embarcações e ventos às vezes superiores a 100 km/h tornam a aproximação de helicópteros uma operação arriscada. O jeito para prover a estação de mantimentos e outros produtos é arremessá-los em palets durante sobrevoos periódicos.
Ainda não há previsão de quando o primeiro carregamento será enviado, mas já está claro o que é preciso fazer para evitar que o coronavírus pegue carona com ele. O processo ocorre em três etapas:
Todos os procedimentos, diz, seguem as recomendações do Ministério da Saúde e da Diretoria de Saúde da Marinha, assim como as diretrizes determinadas pelo Conselho de Gerentes dos Programas Antárticos e do Plano de Ação do Proantar.
Mesmo que ocorrências relacionadas à covid-19 estejam praticamente descartadas, a EACF dispõe de estrutura para lidar com urgências decorrentes da própria atividade no continente gelado, garante a médica. Ela lembra o caso de um alpinista da base, geralmente destacado para acompanhar pesquisadores, que sofreu uma fratura no último verão. “Temos um centro médico capacitado para estabilização, com todos os medicamentos que possamos precisar”, explica Letízia, citando também um protocolo de evacuação, em caso de maiores riscos. “Se a gente não conseguir tratar aqui, estabilizamos o paciente pelo tempo necessário até que se abra uma janela climática (que possibilite o voo) e fazemos contato com a estação mais próxima, como a chilena Frei, que então disponibiliza o helicóptero e leva a pessoa para Punta Arenas (Chile)”, detalha.
Sem uma vacina e com a covid-19 descontrolada no Brasil, ainda não se sabe quais os impactos sobre a próxima Operação Antártica. O comandante Luciano acredita que haverá mais restrições, com exigência de exames prévios para detectar o vírus antes de qualquer desembarque no continente.
Veterano na Antártida, com 33 anos de pesquisa no continente, o professor titular da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Jair Putzke, alerta que será preciso discutir muito bem como evitar um impacto negativo sobre a Antártida e entender melhor como o coronavírus reage em contato com animais. "Sabemos que animais em zoológico se contaminaram porque um tratador estava infectado. Há casos de animais domésticos igualmente contaminados. Então precisamos estar atentos aos resultados das pesquisas que estão sendo publicados aos poucos, para desenharmos como será uma próxima operação. Ao mesmo tempo escutar especialistas em virologia para, a partir do segundo semestre, verificar os perigos associados a uma introdução, ainda que acidental, deste vírus", sugere, reconhecendo que os potenciais prejuízos ao ecossistema antártico podem se tornar irreversíveis.
Por enquanto, a Marinha diz que não há novos procedimentos previstos. Por meio de nota enviada ao JC, a instituição ressalta que “das Emendas Parlamentares previstas (de onde vem parte dos recursos para o Proantar), apenas a quantia de R$ 100 mil foi redirecionada para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus”. Com isso, o planejamento e condução das atividades logísticas permanecem sem alterações, com orçamento previsto para 2020 de R$ 9,5 milhões.
O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), a quem cabe a parte científica do Programa Antártico, acrescenta que em junho haverá definição em relação às atividades de campo ou outros protocolos para a próxima operação considerando a pandemia. O assunto está em discussão na SubComissão para o Proantar, no qual o MCTIC "tem assento e participação ativa", segundo o órgão. "Em virtude do contexto epidemiológico vigente no Brasil e no mundo, informamos que todas as instâncias envolvidas nas operações do Programa Antártico Brasileiro estão engajadas na busca de soluções para a pesquisa antártica, de maneira a minimizar os impactos no cumprimento dos objetivos das propostas em execução", ressalta o ministério, em resposta ao JC.
A última chamada pública para realização de investigações científicas na Antártida, de acordo com o MCTIC, ocorreu em 2018, com a seleção de 19 de projetos de pesquisa. O orçamento total é de R$ 18 milhões, que serão pagos ao longo dos 48 meses de vigência do edital.
Na último verão 2019/2020, cerca de 250 pesquisadores participaram de atividades de campo no continente gelado, em busca de respostas para problemas da humanidade que só o ecossistema antártico pode oferecer.
Quando o navio polar Almirante Maximiano e o navio de apoio oceanográfico Ary Rongel deixaram a Antártida no dia 14 de março, levando de volta para casa os últimos pesquisadores da temporada, o coronavírus já avançava no mundo. Apesar do início do fechamento de algumas fronteiras, a Marinha diz que não houve dificuldades no retorno ao Brasil. As únicas alterações na logística do regresso foram o encurtamento das paradas para reabastecimento nos portos de Punta Arenas (Chile) e Ushuaia (Argentina) e o cancelamento da escala que estava prevista para Montevidéu (Uruguai), mas que não afetaram as atividades de pesquisa.
Leia abaixo os relatos de alguns dos cientistas que estavam a bordo neste período.
Pela primeira vez na Antártida, a doutoranda Lilian Pedroso Maggio passou 45 dias no continente gelado, 20 deles isolada em um acampamento na Ilha Livingston. Entre 2 de fevereiro e 14 de março, a pesquisadora enfrentou a dificuldade de caminhar vários quilômetros por dia subindo e descendo montanhas, mas se diz encantada de descobrir uma paisagem exuberante em meio a um continente inóspito como a Antártida. Lilian participa do projeto Permaclima, da Universidade Federal de Viçosa (UFV-Minas Gerais), que tem como objetivo avaliar o que acontece com os solos e a vegetação em função das mudanças climáticas.
Confira o depoimento: "Quando partimos em expedição, a situação no Brasil ainda não era tão grave, como se tornou até o momento. Desembarcamos na Antártida com a aeronave Hércules, da Força Aérea Brasileira. Em seguida, já embarcamos no navio de Pesquisa Ary Rongel, onde permanecemos alguns dias até sermos lançados ao nosso acampamento. No navio, tínhamos acesso à internet, embora de maneira limitada. No acampamento, o acesso era totalmente restrito. Não tínhamos noção de nada o que acontecia no mundo aqui fora. Só havia um telefone via satélite para casos de emergência e para enviar notícias rápidas aos familiares e amigos. No dia em que fomos avisados do recolhimento do acampamento, ficamos todos muitos ansiosos. Quando os pilotos de helicóptero foram nos retirar, tivemos um baque muito grande ao sabermos da gravidade das proporções que a covid-19 tinha tomado. Com o avanço no número de casos, foi decretado o isolamento na semana que chegamos do continente antártico. Saímos de um isolamento para entrar em outro. Uma situação bastante difícil, pois devíamos permanecer em quarentena, o que nos impediu de matar a saudade dos familiares e contar sobre a fantástica experiência de estar na Antártida".
Também doutoranda em Ciências Biológicas, Bruna Laindorf voltou à Antártida nesta temporada, depois da estreia no continente gelado em 2018. Foi uma das últimas a deixar a região, no dia 1o. de abril, 25 dias depois de realizar seus estudos sobre o potencial das plantas antárticas na produção de fármacos. A cientista compara as diferenças de rotina entre a pesquisa nos trópicos e no clima antártico, além de falar do confinamento no navio em que viajou de volta ao Brasil já sob o avanço da pandemia.
"Para quem está acostumada a realizar expedições em clima tropical, a logística é dramaticamente outra.
Temos a diferença crucial de clima, e com isso a percepção, o foco e seu próprio corpo respondem de forma diferente. As atividades são mais lentas e cautelosas, o objetivo principal, sempre é a segurança, afinal estamos em um ambiente extremo (o ambiente mais inóspito da terra), onde qualquer descuido pode comprometer nossa segurança (seja pela tempera baixíssima da água, deslizamentos, tempestades, gretas na neve e até mesmo pela fauna). As vestimentas especiais para frio, embora sejam da melhor qualidade, comprometem de certa forma a mobilidade, são várias camadas de roupas, além de botas de neve, algo nada comum para quem vive em clima tropical. Os acessórios, como luvas e touca, são essenciais, mas usar luvas de frio, dificulta a motricidade, tornando a coleta, identificação e armazenamento de uma simples planta, uma dura tarefa. O sol refletido na neve, para quem não é acostumado, compromete um pouco a visão, sendo necessário o uso de óculos apropriado. Mas as dificuldades são recompensadas a todo instante com a intrigante paisagem. Para quem acredita que a Antártica é um deserto branco, posso dizer que a Ilha Rei George, onde estive, compreende uma riqueza de vida e beleza inexplicáveis. Cada geleira, cada montanha, os detalhes do mosaico da vegetação avistados, deixa qualquer pesquisador fascinado, e agradecido pelo privilégio de conhecer e ajudar entender esse ambientes tão extremo, que tem muito ainda a nos ensinar."
"Felizmente ficamos isolados em um ambiente privilegiado, saudável, onde dispúnhamos de biblioteca, academia de ginástica, lista de filmes, alimentação excelente, camarotes com banheiros em dupla, além de assistência médica, se necessário fosse. Infelizmente essa não é a realidade que a grande maioria dos brasileiros enfrenta no atual isolamento. Isso me entristece muito, uma vez que o simples fato de ficar em isolamento, mesmo com todas as comodidades, nos afeta. Não consigo imaginar o quão duro deve ser quando se precisa pensar em como por comida na mesa, ou como dividir um ambiente de poucos cômodos com uma família numerosa, ou não conseguir estudar por falta de um computador, acesso à internet e à literatura, ou ainda a violência que muitas mulheres estão sujeitas nesse confinamento."
Bacharel em Biotecnologia, mestre e doutoranda em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Maria Victória Magalhães de Vargas estuda os musgos antárticos como potenciais biofábricas para a produção da L-asparaginase, medicamento utilizado no tratamento da Leucemia Linfoblástica Aguda (LLA).
Ela conta que o retorno para o Brasil ao final da última Operação Antártica foi marcada por uma certa tensão, mas ressalta que o apoio logístico da Marinha garantiu o regresso em segurança: "Na parada estratégica, em Ushuaia (Argentina), já sentimos os efeitos da pandemia, com vários locais, turísticos ou não, fechados. No nosso segundo dia na cidade, os portos também fecharam e não pudemos mais descer do navio. Nossa previsão de ficar lá seria de uns 10 dias, mas ficamos cinco, ancorados no porto. A outra parada prevista, em Montevideo, foi cancelada e não conseguimos nem chegar ao porto, pois já estava fechado para a entrada de estrangeiros. Por causa disso, chegamos antes da data prevista ao Brasil e tivemos que comprovar que estávamos em isolamento, em alto-mar há mais de 14 dias para sermos autorizados a descer em Rio Grande (RS). A Unipampa enviou um micro-ônibus para o nosso resgate, com todas as medidas de proteção, como máscaras, luvas e álcool 70".
Integrante do projeto Neva-Briotecnologia Antártica como alternativa para a produção de medicamentos, o doutorando em Ciências Biológicas Guilherme Afonso Kessler de Andrade passou 25 dias a bordo do navio Almirante Maximiano, fazendo desembarques estratégicos apenas para colher amostras necessárias à análise em laboratório. O pesquisador fala das peculiaridades de fazer pesquisa em um ambiente polar: "É uma grande honra e privilégio poder fazer parte do Proantar. Acredito que todos deveriam ter a oportunidade de ir até lá para poder ver e sentir a importância que aquele local tem. É de encher os olhos poder ver de perto as geleiras, o mar com fragmentos de gelo, a fauna e a flora única daquele ambiente. Mas nem sempre se consegue fazer o programado. Então, é necessário ter sempre outras alternativas em mente, principalmente nós que trabalhamos com amostras vivas. Outro ponto interessante é o trabalho no navio, pois depende muito das condições do oceano. Embora tenhamos pego o Drake calmo, houve dias que não tivemos condições de ir ao laboratório. Com o mar agitado, enjoávamos muito, o que impedia o trabalho".