A tragédia na cidade de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, onde ao menos 178 pessoas morreram devido a fortes chuvas, voltou a colocar em evidência os riscos da urbanização selvagem, com moradias precárias no alto de morros.
A área mais afetada foi o bairro Alto da Serra, não muito distante do centro histórico da cidade que foi residência de verão do imperador Pedro II no século XIX. O local onde aconteceu um deslizamento de terra devastador, no alto de um morro, é densamente povoado, com casas modestas coladas umas às outras, ao longo de ruas estreitas e íngremes.
Todas essas casas foram construídas na encosta, a maioria sem autorização. Cerca de 80 delas foram engolidas pela terra nesta terça-feira.
A enxurrada de lama que destruiu grande parte do bairro surpreendeu o mecânico Michel Mendonça, 35. Ele diz não saber que morava em uma área de risco. "Fui eu que construí a casa, há 10 anos. A gente nunca imaginou que isso pudesse acontecer da forma como foi. A gente sabe que tem encosta lá em cima, mas não tem dimensão do risco", contou à AFP, enquanto varria a espessa camada de lama na frente de casa, que não sofreu danos graves.
"Tenho uma oficina lá embaixo, com 40 cm de água, mas não é nada comparado a todas as pessoas que perderam entes queridos", disse Michel. Ele afirmou que desde que se mudou para o bairro, autoridades nunca alertaram os moradores para o perigo.
"Pobre não tem vez, é sempre o último a saber, só na hora em que acontece mesmo. Acho nessa questão de morro, favela, com certeza as autoridades têm culpa. A tragédia é um fenômeno natural, mas as autoridades certamente são culpadas", desabafou o mecânico.
'Eu dormia tranquila'
Regina dos Santos Alvalá, diretora substituta do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), acredita que, apesar de avanços nos últimos anos, o país tem muito a fazer para reduzir os riscos associados aos desastres naturais.
"O Brasil avançou nestes últimos dois anos na questão do monitoramento e emissão de alertas, mas a gente precisa avançar em outros aspectos, adotar ações que contribuam para minimizar a vulnerabilidade das pessoas e políticas de habitação, de manutenção da mata ciliar", que serve de barreira contra os deslizamentos de terra, explicou. "A gente não consegue evitar a chuva, mas mitigar os seus impactos é possível e crucial."
O Cemaden calcula que 9,5 milhões de pessoas vivam em áreas de risco de deslizamento ou inundação no Brasil, muitas delas em favelas, sem saneamento básico.
"Comprei esta casa pronta, em 1996. Nunca pensei que pudesse acontecer uma coisa dessa. Não a considerava uma casa em área de risco, aqui eu dormia tranquila, mesmo com a chuva", contou a vendedora Sheila Figueira, 59, moradora do Alto da Serra.
O deslizamento passou a poucos metros de sua casa, de dois andares. De sua varanda, ele observa os bombeiros desenterrando corpos. "Não sei se vou poder ficar, mas gosto daqui, esta casa tem um significado especial para mim. Foi comprada com muita luta", lamentou a vendedora.
Cada vez mais no alto
Algo semelhante sente o barbeiro Rafael de Matos, 38, cuja casa fica poucos metros abaixo da de Sheila e também escapou da tragédia. "Sou nascido e criado nesta casa, que meu pai construiu na década de 1970. Na época, era a última casa do morro, a mais alta, mas hoje é uma das que estão mais para baixo", contou.
Para Estael Sias, meteorologista da agência Metsul, os mais pobres são os que pagam pela combinação de desastres climáticos e urbanização descontrolada. "As populações mais pobres, que acabam precisando morar nessas regiões de risco, são as mais vulneráveis, as que ficam mais expostas a esse tipo de situação. Sem falar que vivemos uma crise econômica em consequência da pandemia, e isso acabou se agravando, então o número de pessoas que migraram para áreas de risco certamente aumentou", apontou.
"Além de todo esse cenário puramente meteorológico e associado ao relevo, o fato de essas áreas estarem sendo ocupadas de forma ilegal, irregular, muitas vezes acaba sendo mais um fator de risco", concluiu Estael.